As águas que se passaram moveram outra vez o velho moinho, que também já tinha passado desta para uma pior. Enquanto o vento regurgitava os restos mortais do pobre, a chuva enchia seu reservatório com as águas turvas daquela cloaca lamacenta onde os patos lavam seus pés antes do almoço.
O mesmo vento sacudiu os galhos do pau-terra e neste sofreguidão suas flores exalaram um cheiro exótico que se misturara ao perfume das polianas do cerrado. Era novembro, e chovia! E a chuva não apagara o brilho dos raios solares, mas pessoa alguma ali, usufruía desta singular imagem. Um casebre de pau-a-pique e alguns lençóis de algodão-cru pendurados na cerca feita com arames farpados, dão ao ambiente um aspecto tenebroso.
Cenário decrépito! Cenário decrépito, embaçando o dia e desertificando o cerrado. No casebre, um senil tocava sua também decrépita rabeca. Seus dedos oxidáveis arriscam tocar: “Ave Maria” de Bach. Como ousa? Ganhou cordas novas, não o velho, mas a rabeca. Agora estava tinindo, e certamente Sebastian Bach gostaria de ouvi-la rezar suas composições. A música enche o casebre de majestade. O homem parece imune a devassidão de sua vida e demonstra não precisar de coisa alguma além de sua rabeca que toca aquelas notas sem ao menos saber quem as compôs. Não importa. Isto realmente não importa. Ele chora, mas não de tristeza, chora de saudade. Saudade dos sonhos que não se realizaram, mas que lhe davam motivos para acordar todos os dias.
Sobre a mesa jaz um vidro, desses de compota, cheio de sementes de girassóis. Antigamente cultivava um canteiro destas flores no fundo do quintal. Os filhos se foram e levaram às flores, os netos se foram e levaram os caules. As raízes apodreceram e a terra as digeriu.
O homem tocava sua rabeca de olhos fechados, era bonito de se ver. Era a coisa mais linda que olhos podem enxergar, quando busca ver além do que está a mostra. Era a melodia mais sublime que ouvidos podem ouvir, quando estão atentos a pureza do som. Aquele rosto refletia as marcas do tempo e eram nítidas as suas rugas. Seu olhar embaçado pela nevoa cronológica, insinuava de modo acurado sua frágil vontade de viver.
Chama a atenção... não as rugas, uma pequena cicatriz do lado superior esquerdo de seu cenho franzido. Uma cicatriz quase imperceptível, uma cicatriz confusa, em sua ânsia de ser apenas cicatriz e não um inevitável vinco. O homem carrega em sua face um labor inconfundível, extirpado pelas raízes enquanto toca sua rabeca e chora.
A cicatriz lamenta sua “desexistencial” importância. Mas, houve um dia, em que ela vivenciara o afã de seus melhores momentos. Dias estes em que lhe davam deferência. Dias em que ela era tocada e comentada por vezes e vezes. Dias em que ela fora mais que uma distante lembrança, era o próprio momento em si. Não interessa mais o porquê de sua existência. Se ela apareceu durante a lida do “pão nosso de cada dia”, ou no instante em que o homem colhia seus girassóis. Não importa as cicatrizes, uma vez que se possui rugas.
O homem parou de tocar, caminhou até a mesa e pegou o frasco de vidro e retirou-lhe a tampa, derramando sobre a mesa algumas sementes. Selecionou-as, reservando na mão esquerda as mais graúdas. Depois caminhou na direção de seu antigo canteiro e atirou-as ao léu. Algumas caíram aos seus pés, outras o vento levou para algum lugar e talvez uma ou duas, caíram exatamente onde ele conjeturava que caísse.
Conquanto, o velho morrerá e suas rugas morrerão com ele, mas as suas cicatrizes hão de perdurar naquelas sementes de girassóis e tudo quanto elas representam também.
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