segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Foge, Tatua, foge...


Tudo certo para o desjejum. Um pouco mais tarde, às nove horas: leite achocolatado com um suculento sanduíche de atum. Tinha imaginado que, depois do café, poderia levá-lo para cortar os cabelos, fazer a barba e, quem sabe, lhe compraria um par de  tênis e uma bonita camisa com novos tons de xadrez. A que ele tem usado, feito de tecido tipo flanela, já está bastante surrada.

Mas ele não apareceu. Na caneca, sobre o leite, boiava uma nata escura e asquerosa; o cheiro, outrora salivante de atum defumado, agora putrefez o ar oprimido da casa – ambiente pequeno demais para guarnecer a espera – e olha insistentemente pela porta, como se esse gesto fosse capaz de fazê-lo surgir na esquina: andando um pouco encurvado por causa do peso da mochila que carrega nas costas desde sempre; o jeans encardido e justo demais nas panturrilhas, a velha camisa xadrez, os tênis cansados de carregar o mesmo corpo. O olhar cabisbaixo mirando as passadas das longas pernas – olha para a porta e se depara com a imagem de sua mãe, como se ela fosse parte da porta... A porta que nunca se fecha.

Não. Ele não está na esquina. Outra vez, não veio. Não adianta subjugar a porta. Ele não virá. Não virá mesmo que lhe compre as estrelas, mesmo que lhe cubra de mimos, mesmo que arranque a porta com os seus portais, mesmo que arranque os lábios para escancarar um riso afortunado... Mesmo assim, ele não virá. Porque na sua perspectiva de vida emboscou-se nas alegrias de um ‘não o sei o que’ maior do que todas as insígnias da educação maternal.

Emboscou-se. Sim, com a ciência de quem acredita saber exatamente o que faz da vida.  Com o conceito daqueles que se firmam na ideia de que possuem a capacidade de entrar e sair de qualquer tipo de situação - por mais viciosa que a situação seja. Armou para si uma rede, sabendo de antemão  que a rede que armava  é do tipo que possui nós indesatáveis.

Quando era criança, não tinha um nome – era Filho, o amado filho. Com o tempo chamava a si mesmo de Tatua, às vezes de Filho, às vezes não se chamava - era riso gargalhante como se dissesse “meu nome é felicidade”. Isso foi há muito tempo, enquanto ele ainda fugia de casa para “torar e aparar pipas”. Num tempo em que ele queria voar como se um pássaro fosse. Um pássaro cuja plumagem fora arqueada com varetinhas de piaçaba e cobertas com coloridos papeis de seda. Sua cauda enorme e esvoaçante rasgaria o céu e desenharia nas nuvens as letras do seu nome... Em sua imaginação seria perseguido por uma águia cruel e ele poderia ouvir os gritos alucinantes: “Fuja, Tatua, fuja...”.

Ele não fugiria, enfrentaria a águia e ela não seria forte o bastante para lhe impedir de alcançar o seu sonho. O sonho a que sua mente o capacitou – o sonho de voar alto – tão alto que nem mesmo uma águia seria capaz de alcançar, tão alto que faria voos rasantes nas planícies celestiais e nada, nem ninguém o demoveria de sua obstinação - a obstinação de escrever o seu nome nas alturas.

Mas o tempo levou o menino, levou a pipa, levou o riso debochado de criança feliz, levou o olhar chamuscado de brilho pelas grandezas das pequenas e rotineiras conquistas, levou o desiderato da boa convivência, cobriu as varetinhas de piaçaba com um tom cinza e sua enorme e esvoaçante cauda está repleta de nós. Emboscado, entorpecido... perdido, perdido.. Perdido: pássaro nobre voando com abutres e se alimentando de morte.

Não é mais um menino, não é mais um pássaro/pipa... é uma parede branca com as marcas encardidas no lugar que antes era de um quadro. Um quadro orquestrado de uma imagem sonora e vivaz. Um quadro repleto de informações inteligíveis, um quadro reflexivo – um quadro que sua mãe amava ver na parede... Mas a parede está vazia – e a única revelação que ela expressa é o pânico de alguém que descobriu que há águias que não se pode vencer sozinho. Assim, outra vez ouve os mesmos gritos: “Foge, Tatua, foge”.


(Quando enviei essa crônica para o jornal, no dia 14 de agosto, eu não poderia imaginar que o o meu filho (o Tatua) estava com a sua mala pronta. E no dia 17 de agosto, depois de passar 45 dias em Franco Surto Psicótico ele se matou. Por coincidência ou não, Arthur nasceu no dia 26 de junho - Dia Internacional de Combate ao Uso de Drogas. Foi instituído pela ONU em 1987, seis anos depois o meu Arthur nasceu. Tinha a vida normal de jovem de classe média com todas as oportunidades de ser bem sucedido e seria, caso não fosse sua paixão por Cannabis Sativa (a maconha). Usou-a durante cinco anos e por ser pré-disposto geneticamente a esquizofrenia, surtou por duas vezes em seis meses. Do primeiro surto ficou livre com trinta dias e ficou "limpo" por cinco meses e 27 dias. Mas no dia do seu aniversário quis desafiar a doença e recaiu. Bastou apenas um cigarro de maconha para que ele entrasse em surto outra vez e deste surto não se livrou nem mesmo com o mais forte dos antipsicóticos e por fim, não suportando as terríveis vozes que o atormentavam dia e noite, instigando-o ao suicídio, assim o fez. Ele deixou o rascunho de um livro onde narra toda a sua experiencia com as drogas e o transtorno mental e uma bandeira: MACONHA FAZ MAL SIM.  Ele jamais sentiu vergonha em dizer que era um adicto com transtorno mental. Frequentava os Narcóticos Anônimos e se orgulhava publicamente em sua página no Facebook em viver limpo, SÓ POR HOJE.  - Publicado no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás, em 26 de novembro de 2012 - Republicado em 19 de agosto de 2013 - LEIA TAMBÉM: SÓ POR HOJE - texto elucidativo sobre esses acontecimentos).

7 comentários:

  1. Belo e comovente texto, em que a intuição de mãe entrevia a imagem de uma viagem sem volta de Tatua, o seu filho amado. De fato, há no céu e na terra coisas terríveis, que muitas vezes nos parecem ser inderrotáveis.(Brasigós Felício)

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  2. Esta narrativa desenvolve mais prece e silêncio do que realmente um fato narrado!É mais um canto elegíaco!Em meu livro, " Silêncio em Prosa e Verso: fratura no minério das palavras", há uma parte sobre o silêncio místico,quando escolhi o poeta Afonso Félix de Sousa, para desenvolvê-la. Em certo momento, eu escrevo: " No canto elegíaco de rara beleza, À beira de teu corpo, o silêncio fala mais alto, a partir do próprio título e das três epígrafes que precedem os poemas, sendo a primeira, em forma de dedicatória:

    Ao Giles, meu filho morto.

    A luz se apaga e a poesia
    se transforma em epitáfio.
    (Domingos de Carvalho da Silva)

    Nada passou nada passa
    Nem esta ausência dentro de nó.
    (Lenilde Freitas)

    O filho morto, luz que se apaga, faz com que a poesia sofra uma transmutação: torna-se epitáfio. Morte+Poesia= epitáfio. Morte - Sombra - Poesia - Epitáfio - Ausência constituem fragmentos de uma dor desconhecida até aquele momento, dor essencial, poderosa, difícil de se expressar em palavras, daí ficar estancada nos vãos das palavras:

    É de espanto, é de escárnio, também de paz
    é o sorriso que ainda tens no rosto.
    Terá sido seu último gesto, ou é reflexo
    de teu último pensamento, o que tiveste
    no instante em que mãos invisíveis
    ou só por ti visíveis
    puseram-se a acenar-te da outra margem
    do abismo que ias transpor num salto mortal!"

    Não sei dizer mais nada, Clara!

    Wania Majadas

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  3. Senhora Clara Dawn. Meus mais sinceros sentimentos pela sua perda. Eu não consigo e talvez nunca sequer imaginarei a dor que estás sentindo. Eu era da mesma turma de seu filho na UEG. No começo do curso, ele foi um dos primeiros a fazer parte do meu grupo de trabalho. Talvez eu esteja repetindo coisas que você já sabe, mas acho bom dize-las. Arthur era um rapaz inteligente, argumentativo, de opinião própria. Questionava , trocava idéias. Ele era um bom rapaz. Com certeza mais importante do que as coisas que damos às pessoas, é a maneira que elas se lembrarão de nós. Essa será a imagem que sempre terei de seu filho.
    Com carinho
    Luiz Antonio Martins Costa.

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  4. Parabéns Clara por seu belíssimo texto, sobre algo tão imenso que me deixa sem palavras...

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  5. Só as mães choram profundamente!Mas temos que cobrar dos responsáveis por pelo bem estar dos cidadãos,que façam o que é de sua responsábilidade,porque já ultrapassou a muito tempo das portas dos nossos lares, seje ele da maneira que for.

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  6. CLARA DAWN....ATÉ AGORA TO REFLETINDO SOBRE ESSE TEXTO.....SÓ POSSO DIZER-TE....COMO O AMOR DE UMA MAE É TAO GRANDE....TO SENTINDO A SUA DOR DAQUI....PEÇO A DEUS QUE VC CONTINUE ESCREVENDO E SE COMUNICANDO ATRAVÉS DE DEUS....COM SEU FILHO AMADO E QUERIDO E ESCREVENDO TÃO MARAVILHOSAMENTE....DEUS CUIDA DE VC E TODA SUA FAMILIA.

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