Tudo certo
para o desjejum. Um pouco mais tarde, às nove horas: leite achocolatado com um
suculento sanduíche de atum. Tinha imaginado que, depois do café, poderia levá-lo
para cortar os cabelos, fazer a barba e, quem sabe, lhe compraria um par de tênis e uma bonita camisa com novos tons de
xadrez. A que ele tem usado, feito de tecido tipo flanela, já está bastante
surrada.
Mas ele não
apareceu. Na caneca, sobre o leite, boiava uma nata escura e asquerosa; o cheiro,
outrora salivante de atum defumado, agora putrefez o ar oprimido da casa –
ambiente pequeno demais para guarnecer a espera – e olha insistentemente pela
porta, como se esse gesto fosse capaz de fazê-lo surgir na esquina: andando um
pouco encurvado por causa do peso da mochila que carrega nas costas desde
sempre; o jeans encardido e justo demais nas panturrilhas, a velha camisa
xadrez, os tênis cansados de carregar o mesmo corpo. O olhar cabisbaixo mirando
as passadas das longas pernas – olha para a porta e se depara com a imagem de
sua mãe, como se ela fosse parte da porta... A porta que nunca se fecha.
Não. Ele não
está na esquina. Outra vez, não veio. Não adianta subjugar a porta. Ele não
virá. Não virá mesmo que lhe compre as estrelas, mesmo que lhe cubra de mimos,
mesmo que arranque a porta com os seus portais, mesmo que arranque os lábios
para escancarar um riso afortunado... Mesmo assim, ele não virá. Porque na sua
perspectiva de vida emboscou-se nas alegrias de um ‘não o sei o que’ maior do
que todas as insígnias da educação maternal.
Emboscou-se.
Sim, com a ciência de quem acredita saber exatamente o que faz da vida. Com o conceito daqueles que se firmam na ideia
de que possuem a capacidade de entrar e sair de qualquer tipo de situação - por
mais viciosa que a situação seja. Armou para si uma rede, sabendo de
antemão que a rede que armava é do tipo que possui nós indesatáveis.
Quando era
criança, não tinha um nome – era Filho, o amado filho. Com o tempo chamava a si
mesmo de Tatua, às vezes de Filho, às vezes não se chamava - era riso
gargalhante como se dissesse “meu nome é felicidade”. Isso foi há muito tempo,
enquanto ele ainda fugia de casa para “torar e aparar pipas”. Num tempo em que
ele queria voar como se um pássaro fosse. Um pássaro cuja plumagem fora arqueada
com varetinhas de piaçaba e cobertas com coloridos papeis de seda. Sua cauda
enorme e esvoaçante rasgaria o céu e desenharia nas nuvens as letras do seu
nome... Em sua imaginação seria perseguido por uma águia cruel e ele poderia ouvir
os gritos alucinantes: “Fuja, Tatua, fuja...”.
Ele não
fugiria, enfrentaria a águia e ela não seria forte o bastante para lhe impedir
de alcançar o seu sonho. O sonho a que sua mente o capacitou – o sonho de voar
alto – tão alto que nem mesmo uma águia seria capaz de alcançar, tão alto que
faria voos rasantes nas planícies celestiais e nada, nem ninguém o demoveria de
sua obstinação - a obstinação de escrever o seu nome nas alturas.
Mas o tempo
levou o menino, levou a pipa, levou o riso debochado de criança feliz, levou o
olhar chamuscado de brilho pelas grandezas das pequenas e rotineiras
conquistas, levou o desiderato da boa convivência, cobriu as varetinhas de
piaçaba com um tom cinza e sua enorme e esvoaçante cauda está repleta de nós.
Emboscado, entorpecido... perdido, perdido.. Perdido: pássaro nobre voando com
abutres e se alimentando de morte.
Não é mais um
menino, não é mais um pássaro/pipa... é uma parede branca com as marcas
encardidas no lugar que antes era de um quadro. Um quadro orquestrado de uma
imagem sonora e vivaz. Um quadro repleto de informações inteligíveis, um quadro
reflexivo – um quadro que sua mãe amava ver na parede... Mas a parede está
vazia – e a única revelação que ela expressa é o pânico de alguém que descobriu
que há águias que não se pode vencer sozinho. Assim, outra vez ouve os mesmos
gritos: “Foge, Tatua, foge”.
(Quando enviei essa crônica para o jornal, no dia 14 de agosto, eu não poderia imaginar que o o meu filho (o Tatua) estava com a sua mala pronta. E no dia 17 de agosto, depois de passar 45 dias em Franco Surto Psicótico ele se matou. Por coincidência ou não, Arthur nasceu no dia 26 de junho - Dia Internacional de Combate ao Uso de Drogas. Foi instituído pela ONU em 1987, seis anos depois o meu Arthur nasceu. Tinha a vida normal de jovem de classe média com todas as oportunidades de ser bem sucedido e seria, caso não fosse sua paixão por Cannabis Sativa (a maconha). Usou-a durante cinco anos e por ser pré-disposto geneticamente a esquizofrenia, surtou por duas vezes em seis meses. Do primeiro surto ficou livre com trinta dias e ficou "limpo" por cinco meses e 27 dias. Mas no dia do seu aniversário quis desafiar a doença e recaiu. Bastou apenas um cigarro de maconha para que ele entrasse em surto outra vez e deste surto não se livrou nem mesmo com o mais forte dos antipsicóticos e por fim, não suportando as terríveis vozes que o atormentavam dia e noite, instigando-o ao suicídio, assim o fez. Ele deixou o rascunho de um livro onde narra toda a sua experiencia com as drogas e o transtorno mental e uma bandeira: MACONHA FAZ MAL SIM. Ele jamais sentiu vergonha em dizer que era um adicto com transtorno mental. Frequentava os Narcóticos Anônimos e se orgulhava publicamente em sua página no Facebook em viver limpo, SÓ POR HOJE. - Publicado no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás, em 26 de novembro de 2012 - Republicado em 19 de agosto de 2013 - LEIA TAMBÉM: SÓ POR HOJE - texto elucidativo sobre esses acontecimentos).
Belo e comovente texto, em que a intuição de mãe entrevia a imagem de uma viagem sem volta de Tatua, o seu filho amado. De fato, há no céu e na terra coisas terríveis, que muitas vezes nos parecem ser inderrotáveis.(Brasigós Felício)
ResponderExcluirEsta narrativa desenvolve mais prece e silêncio do que realmente um fato narrado!É mais um canto elegíaco!Em meu livro, " Silêncio em Prosa e Verso: fratura no minério das palavras", há uma parte sobre o silêncio místico,quando escolhi o poeta Afonso Félix de Sousa, para desenvolvê-la. Em certo momento, eu escrevo: " No canto elegíaco de rara beleza, À beira de teu corpo, o silêncio fala mais alto, a partir do próprio título e das três epígrafes que precedem os poemas, sendo a primeira, em forma de dedicatória:
ResponderExcluirAo Giles, meu filho morto.
A luz se apaga e a poesia
se transforma em epitáfio.
(Domingos de Carvalho da Silva)
Nada passou nada passa
Nem esta ausência dentro de nó.
(Lenilde Freitas)
O filho morto, luz que se apaga, faz com que a poesia sofra uma transmutação: torna-se epitáfio. Morte+Poesia= epitáfio. Morte - Sombra - Poesia - Epitáfio - Ausência constituem fragmentos de uma dor desconhecida até aquele momento, dor essencial, poderosa, difícil de se expressar em palavras, daí ficar estancada nos vãos das palavras:
É de espanto, é de escárnio, também de paz
é o sorriso que ainda tens no rosto.
Terá sido seu último gesto, ou é reflexo
de teu último pensamento, o que tiveste
no instante em que mãos invisíveis
ou só por ti visíveis
puseram-se a acenar-te da outra margem
do abismo que ias transpor num salto mortal!"
Não sei dizer mais nada, Clara!
Wania Majadas
Senhora Clara Dawn. Meus mais sinceros sentimentos pela sua perda. Eu não consigo e talvez nunca sequer imaginarei a dor que estás sentindo. Eu era da mesma turma de seu filho na UEG. No começo do curso, ele foi um dos primeiros a fazer parte do meu grupo de trabalho. Talvez eu esteja repetindo coisas que você já sabe, mas acho bom dize-las. Arthur era um rapaz inteligente, argumentativo, de opinião própria. Questionava , trocava idéias. Ele era um bom rapaz. Com certeza mais importante do que as coisas que damos às pessoas, é a maneira que elas se lembrarão de nós. Essa será a imagem que sempre terei de seu filho.
ResponderExcluirCom carinho
Luiz Antonio Martins Costa.
Indescritíveis beleza e sutileza.
ResponderExcluirParabéns Clara por seu belíssimo texto, sobre algo tão imenso que me deixa sem palavras...
ResponderExcluirSó as mães choram profundamente!Mas temos que cobrar dos responsáveis por pelo bem estar dos cidadãos,que façam o que é de sua responsábilidade,porque já ultrapassou a muito tempo das portas dos nossos lares, seje ele da maneira que for.
ResponderExcluirCLARA DAWN....ATÉ AGORA TO REFLETINDO SOBRE ESSE TEXTO.....SÓ POSSO DIZER-TE....COMO O AMOR DE UMA MAE É TAO GRANDE....TO SENTINDO A SUA DOR DAQUI....PEÇO A DEUS QUE VC CONTINUE ESCREVENDO E SE COMUNICANDO ATRAVÉS DE DEUS....COM SEU FILHO AMADO E QUERIDO E ESCREVENDO TÃO MARAVILHOSAMENTE....DEUS CUIDA DE VC E TODA SUA FAMILIA.
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