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segunda-feira, 17 de novembro de 2014

“É mais fácil fazer da tolice um regalo, do que da sensatez”

 A incompletude, escreveu Manoel de Barros, é a maior riqueza do homem. Sendo assim, eu sou a pessoa mais rica que conheço. Concebo-me incompleta como ninguém.

          Ah, incompletude! A essência humana, no afã dessas linhas ambíguas, fazendo-me tecer veios na instabilidade semântica de Manoel de Barros, para escrever uma crônica, cujas visões oníricas revelam a realidade de viver: crescer dói.

Eu queria cinco chances. Para viver cinco vidas, ter cinco profissões distintas, morar em cinco países diferentes... Eu queria ser um palhaço, queria ser astronauta e também professora. Queria ser antropóloga e conhecer a cultura de todos os povos, e com eles e por eles, desbravar o mundo à procura de algo que faça com que a vida tenha um sentido real na Terra.

Mas o que eu queria mesmo era Ser Benevolente e viver aonde o vento descansa as pestanas e se veste de coisa alguma depois de banhar em águas plácidas... E descobrir se é verdade que “a quinze metros do arco-íris o sol é cheiroso." Penso que para isso, Manoel,  eu precisaria mesmo de cinco chances. Ser Benevolente? Impossível, sou abastada em imperfeição...

Não dá para ser apenas um, quero ser muitas. Não vejo sentido em ser apenas vital. Nascer, reproduzir e morrer... Deve existir algo além. Algo que transcende as picuinhas passionais. Quero pagar pra ver. Não quero ser apenas aquela que acorda às cinco da manhã, que almoça ao meio-dia e se deita às vinte e uma horas depois de assistir ao jornal.

Dê-me uma receita, uma universal panacéia. Um substrato ético que cura a incompletude do ser. Algo que Nicolas Flamel não descobriu em sua pedra filosofal. Um elixir da longa vida que não está na alquimia, nem nas medicinas, tradicional ou contemporânea, tampouco, na indelével busca pela felicidade.

Dê-me, oh céus! O elixir da completude, e eu enfim morrerei para tantos. Mas, sobretudo morrerei para dentro. Porque metade de mim busca-me e a outra metade despede-se de mim. Porque parte do que sou é para ser feliz e outra parte, parte... Parte incompleta e é sempre incompleta que retorna...

Porque eu quero ser tantos e nunca ser esse eu que se adapta a tudo e a todos. Esse eu inautêntico e camaleão. Porque eu quero mais que efêmeras alegrias na realização das tarefas cotidianas, mais que pequenos brindes por cumprir deveres...

Ah, Manoel de Barros... estou rindo chorando... Você aí, fazendo versos, com Mario Quintana e com os outros chatos de todos os tempos. E nós aqui com esse fado que vocês nos deixaram de não entender quase tudo sobre o nada. Deixou-nos com a inútil consciência de que os nossos mundos são profundos sim, mas é de vazios. Por conta disso, Manoel, vivemos, cada um de nós, em nossos próprios abismos interiores e andamos em promiscuidade com os nossos fantasmas incompletos. Porque fomos marcados à exposição de nossas fraquezas, ao desalento, ao amor, à poesia. Foi a poesia, sim, a poesia que ensinou-nos a nos expor como se o sentido da vida fosse dar sentido às coisas sem sentido algum: porque "é mais fácil fazer da tolice um regalo, do que da sensatez".



Publicada no jornal Diário da Manhã - DM Revista - Goiânia - Goiás - em 17 de novembro de 2014. 


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quinta-feira, 3 de outubro de 2013

“As pessoas deviam morrer com todas as suas coisas” *


Aqui ajuntando as coisas do meu filho para a doação.  Abrindo gavetas e ‘caixas íntimas’... senti uma  estranha sensação ao encontrar em seus guardados todas as homenagens que, em vida, organizei para ele: desde pequeno, sempre permitia a presença de seus amigos para celebrarmos com ele surpresas em aniversários, torneios de futebol em videogame e assistirmos filmes... (nos finais de semana a casa se enchia de pré-adolescentes).

Há tantas cartas escritas para ele... há um rolo de cartas de mais de 3 metros que a Pequena e eu fizemos, colhendo cartas de parentes e amigos para quando ele voltasse de seu batismo na igreja evangélica. Outras tantas numa caixa enfeitada com recortes de revistas com alguns de seus personagens favoritos (para entregar a ele quando estava no “Encontro Videira” – em fevereiro deste ano)...  e há mais de 150 mensagens que colhi de seus amigos  no Facebook, para que ele lesse enquanto estivesse na clínica.

Até um livro eu escrevi para ele -  com o nome dele (“Artur, o grande urso” – livro que escrevi quando ele estava com oito anos, mas que somente este ano foi publicado  – Que coisa!). No aniversário dele, em junho deste ano (52 dias antes dele partir), também fiz homenagens e poemas em posts no Face.  Familiares disseram-me que as minhas homenagens a ele em vida faziam parecer que ele estava morto...

Mas desde que ele nasceu, eu senti [senti simplesmente] que dedicaria muitos momentos da minha vida para fazê-lo sentir-se amado... Mas...!? Mas ele morreu “naquela noite” de 17 de agosto de 2013, às 21h21min. Queria poder dizer que ele teve uma recuperação milagrosa. Mas não teve –  desistiu de respirar - desistiu. Queria poder dizer que a sua doença e morte tiveram um lado positivo e com a sua partida a Pequena e eu podemos, enfim, tocar nossas vidas sem as agruras de seus surtos psicóticos.

Queria poder dizer que a vida dele teve um sentido ímpar para a história da humanidade; que, focados no exemplo de sua doença e morte, muitos jovens reformularam seu conceito sobre o uso da maconha; que uma escola ou uma rua foi batizada com o nome dele; ou que uma Lei de Incentivo ao Adicto em Recuperação foi criada por causa dele...

No entanto, isso não aconteceu. Sou sabedora de que a morte do meu filho é “banal”; ele foi apenas mais um que recorreu à “automorte” em busca de paz, neste mundo onde cerca de 27 milhões de pessoas - o que representa 0,6% da população mundial – são usuárias de drogas. O Relatório Mundial Sobre Drogas da ONU 2012 diz que praticamente uma em cada 100 mortes entre adultos de 15 a 64 anos é atribuída ao uso de drogas lícitas e ilícitas...

Nunca entenderei por que ele tinha que morrer e a Pequena e eu vivermos. Certamente não há explicação para isso. A morte é única exatidão da vida. Talvez por isso seja tão terrível. A exatidão é algo sem perspectiva alguma – um quadrado mágico – onde todas as somas dão sempre o mesmo resultado. E mesmo sabendo disso, a gente teima em empreender a contagem das razões inúmeras vezes - Inúmeras vezes – inutilmente - até a exaustão.

Enquanto ele esteve com sua mente enferma, cheguei a pensar que eu tinha vindo a esta vida apenas para cuidar dele... e, por fim, não consegui. Talvez um dia eu concorde que não era para ser como eu pensei. Hoje o que importa, é a certeza de que tive um filho e pude conviver com ele por 20 anos. Um filho encantador, gentil, inteligente e prestativo que, somente na fase de adicção ativa e por causa dela, foi rude e indiferente com aqueles que o amava e ainda amam.

... olho para aquela fotografia ali... Aquela que lhe mantém engessado o sorriso na face e  dela surge o homem cuja história, a partir de então, assim descrevo:  aos 23 anos, já concluído o curso de arquitetura, ele passou no concurso da Força Aérea Brasileira e tornou-se um importante arquiteto da Aeronáutica; aos 30 anos recebeu uma condecoração por seus relevantes serviços voluntários na reconstrução de cidades destruídas por catástrofes naturais; aos 50 anos viu ao redor de sua mesa, a mulher amada, seus filhos e seus netos; aos 65 se aposentou, não porque se sentia velho, mas porque desejava ter mais tempo para dedicar-se a sua ânsia de escrever poemas; aos 85 anos, numa bela manhã primaveril, deu o seu último suspiro enquanto colhia tulipas róseas para ornar de risos a face de sua amada... 

* "As pessoas deviam morrer com todas as suas coisas.” García Márquez. Imagem: O Quarto - Vicente Van Gogh.

(Publicado em 03 de outubro de 2013 - Leia outros textos sobre o mesmo assunto: Só por hoje  -Foge, Tatua, foge - Efeito Colateral  - visite o blog: www.maconhafazmalsim.blogspot.com e curta a página no Facebook - Obrigada.).


segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Efeito Colateral

A mulher chorando de Pablo Picasso - 1937
Tenho me repetido tanto nos últimos meses que a minha literatura está mais para “A Lagoa Azul” nas Sessões da Tarde da Rede Globo. Acho desrespeitoso para com os meus reincidentes leitores que vão às bancas comprar o jornal todas as segundas-feiras, (dizem), só para ler minhas “garatujas”.

Mas perdoem-me o autoplágio semanal. É que tenho me sentido um tanto quanto enjoada: basta olhar para folha branca que logo um gosto acre me vem à boca. Não é o ato em si que me causa esse mal-estar quase insuportável. É o luto – efeito colateral – co/lateral... Que coisa!

Não há um único raciocínio cognitivo que eu consiga desenvolver sem que eu sinta uma forte “tensão intracraniana” – como se os pensamentos comprimissem o meu cérebro de um modo dolorosamente enfadonho.

Não quero escrever prosa alguma. Não há em mim vontade de inventar histórias ou narrar metaforicamente o meu conceito dialético sobre a existência do parafuso... Não quero. Quero gritar todos os palavrões e todas as asneiras que a minha pudica educação permitir. Posso?  Quero, ao menos uma vez, brigar com Deus e dizer que eu pensei ter ouvido um riso irônico quando pedi para Ele realizar o sonho do meu filho de receber o Prêmio Pritzker de Arquitetura. Posso? Isso a minha educação não permitiria mesmo. (Não farei nada disso. Meu grito é sob as águas do chuveiro porque elas levam as fraquezas do meu espírito para o esgoto).

Mas talvez eu tente ‘poemizar’ a minha vida, pois é mais fácil transitar pela realidade mergulhada no lirismo do que simplesmente viver. É isso que eu tenho feito -  escrever uns versinhos para a fase de elegia ao filho morto:

Descobri que o silêncio é palpável
tem cheiro, textura e gosto.
Descobri-o nessas coisas que pertenceram a você
e que agora você pertence a elas.
Descobri que esse silêncio é visível e belo...
[como uma borboleta sem asas].

Mas, e esse sorriso que ainda tens na face? É de troça?
Terá sido a transposição de teu ultimo reflexo?
Não alcanço no silêncio desse riso - o pensamento –
o que tiveste no instante em que vozes imaginárias ou só por ti audíveis
atinaram-se a mostrar-te uma paz em forma de branco lençol...
Não concebo que o teu sorriso, vedado por um nó na garganta,
tenha se transformado em epitáfio.

O tempo passa, mas não passa tempo algum.
E é nesse tempo que passa correndo sem sair do espaço
que tento ajuntar letras ambíguas
sobre toda essa benevolência expressa [como sempre] em seu olhar;
sobre suas asas de anjo que [no último abraço] ergueram-me do chão...
Espero que um dia você possa perdoar-me por não conseguir entender

Sua ânsia de pássaro em livrar-se [cedo demais] da gaiola da vida.
(Publicada no jornal Diário da Manhã - DM-Revista em 30 de setembro de 2013)

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Só por hoje


Apesar de, no momento, eu estar pairando no limbo das incertezas e da dor. Meu sentimento é de uma profunda misericórdia. Uma misericórdia tão grande que penso que transbordo e preciso abraçar a muitos através desse ‘dom’ que Deus me deu de rabiscar palavrinhas. Hoje, estimado leitor, perdoe-me, mas a  minha misericórdia não se vestirá de uma lírica prosa.  Pois, daqui de onde pairo, somente enxergo Arthur, o meu menino/pipa.

Falarei de morte, mas prometo que é SÓ POR HOJE. Não gosto de suscitar a piedade, mesmo porque não sou  piedosa o bastante para merecê-la.   Tão somente porque o meu filho jamais sentiu vergonha de revelar-se como um adicto com transtorno mental – falarei do porquê de sua morte.

Arthur venceu a febre reumática – a cada vinte dias ele tomava injeções de Benzetacil e isso foi por cinco anos. No estômago, uma bactéria rara o fazia vomitar sempre – venceu-a. Antes do reumatismo participou de vários campeonatos nacionais e regionais de Karaté, venceu todos eles. Participou de um campeonato nacional de física e foi o primeiro colocado. Venceu o flagelo do vestibular e conquistou uma vaga de Arquitetura na Universidade Estadual de Goiás.  Até o ensino médio, Arthur era  considerado o melhor aluno do colégio - em todos os colégios por onde passou. Ele era, e gostava de ser, vencedor em tudo.  Mas,  pergunta que bombardeia-me de todos os lados está focada em POR QUE ele não venceu o  campeonato contra às drogas?

As respostas são insignificantes, pois não justificam a terrível perda. Arthur não era apenas esse vencedor descrito acima: era um jovem com todas às chances de viver ‘ricamente’ dentro de suas alternativas de vitória de vida e optou por alternativas nem um pouco inocentes. Ignorante sim. Ignorante de sua condição de DEPENDENTE QUÍMICO e da pré-disposição genética para a esquizofrenia.

Um jovem curioso que gostava de “curtir” a vida, como ele mesmo dizia “ como se estivesse na hora do recreio”. Maldita Cannabis Sativa. Maldita maconha.   – “Não faz mal, mãe. Pelo contrário é remédio” – dizia ele. E assim seguiu sua paixão por essa droga de um modo doentio.  Em cinco anos de uso diariamente. Exames comprovaram que ele não era usuário de outras drogas. Era um ‘maconheiro’  com orgulho em ser. Orgulho até que ela o nocauteou fatalmente.

Um surto-psicótico em dezembro de 2012: vozes, vultos, alucinações... Ele parou de dormir, pois o tormento lhe possuía sem intervalos. Saiu do surto com trinta dias e voltou para casa: tratamento com antipsicóticos e acompanhamento terapêutico – tudo certo e a doença controlada por cinco meses e vinte e sete dias. Mas o menino/pipa decidiu abusar da incerteza e se pôs a prova:  “usei maconha no meu aniversário, era uma forma de comemorar. Foi para eu ter certeza se voltaria a ouvir às vozes e ficaria surtado e aconteceu como a minha psiquiatra disse – ‘se você voltar a fumar maconha, vai surtar’  - dito e feito”(trecho descrito em seu caderno de anotações. Ele foi internado outra vez. A medicação fora dobrada e redobrada, modificada... mas não foi suficientes para livrá-lo do tormento e  no dia 17 de agosto depois de passar 45 dias ouvindo vozes, ele desistiu da maior de todas as suas lutas. Ele não queria morrer, apenas não queria mais viver – é diferente).


Ele deixou uma BANDEIRA – MACONHA FAZ MAL SIM -  e junto com a bandeira, deixou um rascunho narrando a sua experiência com o uso dessa droga; o surto psicótico e a sua boa vontade em que a sua vida sirva de exemplo a muitos.  Ergo essa bandeira e aceno-a com a certeza de que NÃO ESTAREI SOZINHA,  Arthur e tantos outros estarão comigo. E é com as palavras do menino/pipa que desejo terminar esse texto: “ Não escondo de ninguém a minha doença. Todos os meus familiares e amigos sabem que sou adicto e frequento o NA e que estou em recuperação de um transtorno mental. Eu me sinto confortável para dizer disso. Comecei a ser honesto com a minha recuperação quando aceitei a minha doença e descobri que SÓ POR HOJE posso ficar livre dela”. 

(Publicado no jornal Diário da Manhã - DMRevista em 26 de agosto de 2013. Leia também: Foge, Tatua, foge   - texto intuitivo)

segunda-feira, 22 de julho de 2013

O Silêncio

Descobri que eu gosto mais do silêncio do que das palavras. Surpreendente, uma vez que são palavras que fazem de mim quem sou. É que, no silêncio, há um corpo; há uma face sisuda que às vezes até parece sábia; há uma aura reflexiva e um espírito em plena quietude das emoções... Eu amo o silêncio porque ele não tem vergonha de mostrar sua fisionomia, mas as palavras são multifacetadas e andam para lá e para cá, ora com uma ideia fixa, ora em undergrounds dialéticos. 

Agora mesmo, estou em silêncio, e nesse meu silêncio  há um segredo dentro de um cenário violável: talvez um céu de estrelas coalhado – estrelas promíscuas brilhando risos dourados pra qualquer um;  talvez um poço flechado por um  raio de luz  tênue e oscilante por causa do vento que inquieta a sombra das arvores... Mas pode ser que nesse meu silêncio exista um vale secreto que jamais será revelado a pessoa alguma... Tampouco a mim. Oh, céus!

Hoje eu não desejei inquirir, das palavras, sequer uma concordância. Hoje estou mais para monologar com o silêncio. Gosto da sobriedade dele, ainda que as palavras me embriaguem até que eu caia em desuso.  Às vezes, o silêncio é ensurdecedor, deveras, mas é no silêncio que o olhar dispensa seus enigmas.  Será que o que não é dito, também não é ouvido? Como explicaria assim uma janela de vitral no andar mais alto de um prédio? Cabeça inclinada para baixo, olhando através dos vidros, e eis que uma civilidade se revela, na distância, silente e misteriosa.

Gosto de ficar em silêncio com a minha confusão mental; com a minha ânsia em desvendar meus próprios segredos temporais. Mas há um barulho dentro de mim agora. Uma gritaria – sobras de uma patusca sem freios que invadiu a zona de conforto do sonho. Eu quero cá comigo o silêncio dos ateus, absoluto. Vou coar o meu sonho nesse silêncio, só para ver se, filtrado, ele se odora de realidade. Todavia, penso que é no desembocar dos sonhos que o silêncio emudece na rigidez da face. 

Quando os sonhos fenecem na proa e até mesmo a maré se veste de silêncio, o melhor é ficar quieto, como se não estive na superfície, mas nas profundezas do oceano onde tormenta alguma pode alcançar.  Eu gosto de ficar quieta. Pregada em coisa miúda vegetalmente para esbanjar-me na contemplação do vazio, porque nele encontro tempo para enxergar grandezas trazidas pelo silêncio. Grandezas que nem os pesadelos me podem tirar. 

Há em mim um amor epifânico pelo silêncio. Dele sou a amante insaciável e apreendo-o comigo em horas tantas para ouvirmos nossas canções prediletas. Sentir-me-ia pouco confortável se tivesse que dividir minha preferência musical com o burburinho. 

Mas não se enganem com essa minha mansidão e esse meu recôndito conforto. Que essa minha face de compulsória lenidade não equivoque os meus, pois por mais perene que a tranquilidade em mim apareça, se no exterior demonstro que só a paz me acontece, agita-se em mim, desconfio, um maremoto. De um maremoto não se pode extrair palavras que soem melhor do que o silêncio – então, eu me calo.

(Publicado no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 22 de julho de 2013)

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sexta-feira, 19 de julho de 2013

O jardim está pronto, agora só falta florir...

Eram meados de setembro, e a neve começara a derreter sobre o Vale Nevado. A água  da banheira exalava  vapor quente, e o fervilhar da hidromassagem compunha um agradável ruído na solidão planejada... Eram meados de setembro, e Santiago patriota estava pronta para a Grande Parada Militar em homenagem às Glórias do Exército Chileno. No Palácio de La Moneda, o relógio  anunciava a hora oito  e a cidade  enublava sob  quatro graus.

O roteiro do dia era  assistir ao desfile cívico, esquiar no Vale Nevado e ir a Valparaiso conhecer La Sebastiana, uma das casas de Neruda.  Ou ficar por horas naquelas águas térmicas: Casillero Del Diablo numa taça sobreposta na espuma jacente à borda da banheira; Montserrat Caballé compondo a trilha sonora  com sua divinal e lírica voz; o bloco de notas ao alcance das mãos e uma caneta que, às vezes, servia para prender os cabelos...  

Do que mais se precisa para apreciar as benevolências da vida? De um cenário termostato de confortável vestimenta aos sentidos ou da natureza física e fria das cordilheiras?   Às nove horas e trinta minutos é o limite de espera do guia na porta do hotel. Ora, a neve estava descongelando, o que tornava a subida ao Vale Nevado uma aventura com risco de acidentes, era isso ou esperar até a próxima temporada.

A La Sebastiana, comprada por Neruda em 1959, lugar onde ele escreveu tantas poesias remanescentes do amor e do mar: janelas amplas com a vista extraordinária para os movimentos do Pacífico e a audição promíscua das gentes daquele morro abobadado de casas em Valparaiso. Inspirador, sim?: “eu construí a casa/primeiramente fi-la  de ar/depois hasteei a bandeira e deixei-a pendurada no firmamento/ na estrela/na claridade e na escuridão/.../ não se pense mais/ esta é a casa/tudo o que lhe falta será azul/agora só precisa de florir/e isso é trabalho da primavera.”

O bloco de notas: escrita portátil “antipósmoderna”. Não se deve abrir mão – jamais! Tudo que um escritor precisa para viver ordinariamente é de uma PITT, uma Malwee, um par de All Star, Oral B, Lux Luxo, Bloco-de-Notas-de-Papéis-Descartados e uma Bic azul. O extraordinário fica por conta de uma mente cosmopolita  e de suscetíveis espasmos inteligíveis que, vez ou outra, rabiscam a vocação para construtor de quimeras.

Pode ser que ele precise de uma La Sebastiana com imensas janelas retangulares. Pode ser que ele precise comer neve e dela também fazer bonecos; pode ser que precise sapatear sobre a uva para respeitar o vinho; pode ser que necessite, com urgência, levar um soco debaixo das costelas para saber como se deve escrever isso; talvez ele precise, realmente, de um banho de espuma para mergulhar na maciez de uns versos; pode ser que ele seja obrigado a frequentar pubs londrinos para descrever o sofisma de uma boemia muito cara; pode ser que ele necessite intercambiar experiências turísticas; talvez ele se permita visitar, ao menos uma vez por ano,  o Museu do Louvre só para saber se o que sustenta a Gioconda são os parafusos ou as buchinhas e depois ficar horas meditando sobre qual dos dois é mais importante no equilíbrio da “arte.”

... o relógio acena a hora nove: zona de conforto ou os riscos do Vale Nevado? Coração acampado ou poesia alheia?  As pontas dos dedos estão congeladas  no equilibrar do bloco de notas -  Montserrat Caballé se cala – a mão retesada despenca sobre a torneira, liga-a com suave selvageria – a espuma escorre da bucha  e transborda na tigela de vidro –  o bloco de notas foi parar sobre o fogão e a caneta voltou a sustentar os cabelos enquanto as  louças eram subjugadas... Pode ser que, extraordinariamente, eu tenha vivenciado isso. Pode ser que, ordinariamente, eu tenha sonhado.  

(Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 15 de julho de 2013).

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segunda-feira, 1 de abril de 2013

Profundamente breve




Por mais instruída que seja uma pessoa, ela é ignorante em muitas coisas. Eu, por exemplo, não sei coisa alguma sobre o “respiratio” . Vou descobrir agora mesmo, enquanto os meus dedos procuram o que fazer. E se eu achar que a existência do “respiratio”  é interessante o suficiente para compor o meu texto – acredite – ela o há de compor; senão, não. Porque se informar acerca de algo não é conhecimento, não é saber, logo, por mais que eu me informe sobre o “respiratio”, ainda serei ignorante, pois é preciso dedicação e boa vontade para se ter conhecimento de algo: é preciso vivência. Eu sou escritora, mas deveria ser bióloga, porque tudo o que diz respeito a viver me interessa.

Neste instante, embaixo, na esquina do prédio onde moro, um homem está encostado ao muro. Vejo-o através da janela: uma perna dobrada para trás e apoiada à parede, dedos polegares nos bolsos enquanto os outros dedos tamborilam ao som de seu assovio... Ora, ele está assoviando “A Majestade, o Sabiá”.  Não dá para buscar outros fazeres agora – paro para vislumbrá-lo e ouvi-lo: “Tô indo agora tomar banho de cascata/quero adentrar nas matas onde Oxóssi é o Deus/ Aqui eu vejo plantas lindas e selvagens/ Todas me dando passagem/ Perfumando o corpo meu.”  A minha mãe adora essa música – adorava. Porque se converteu ao cristianismo e a música faz alusão a Oxóssi. Que diferença que faz o nome? Deus é Deus. Eu sou escritora, mas deveria ser musicista epifânica,  porque toda a música que eleva o espírito me interessa.

‘Não. Não vai embora! Fica mais pouco... Termina a música!’ – Ele, certamente, não poderia ficar ali até o final da música. Talvez tenha sido o dever que o chamou, talvez tenha cansado de esperar por não sei quem, talvez tenha me visto na janela, se erubesceu e só por isso encerrou a música como se para isso tivesse usado um facão afiado. Lamentável. Para mim? Não, para ele, que ignorou a plateia. Pobre homem ignorante acerca dos privilégios. Mas a ignorância acerca dos privilégios é uma riqueza que perdemos no primeiro gole de água engarrafada. Partindo desse prisma, o homem na esquina não é pobre, é rico: guardou um pouco de sua música para depois. Eu sou escritora, mas deveria ser psicopedagoga, porque tudo que diz respeito aos mistérios da mente e do comportamento humano me interessa.

Não importa. Terminarei eu a canção no meu desajeitado assoviar para dentro: “ Esta viagem dentro de mim foi tão linda/ Vou voltar à realidade, pra este mundo de Deus/ Pois o meu eu, esse tão desconhecido/ Jamais serei traído/ Pois esse mundo sou eu.” Não gostei muito de assoviar “A Majestade, o Sabiá” – perdi o fôlego  e uma fadiga estranha comprimiu os meus pulmões. Uma viagem para dentro não pode ser sôfrega. Uma viagem para dentro não deve ao menos ser perceptível – apenas sentida intimamente. Eu sou escritora, mas deveria ser logósofa, porque tudo o que diz respeito à autotransformação involuntária me interessa.

Estou chegando ao fim deste emaranhado de letras e ainda não me informei sobre o “respiratio”. É que eu tenho essa mania de falar sem falar; de instigar a dúvida; de me desdizer; de colocar o meu cognitivo à prova sob a perspicácia do leitor. Eu jogo comigo mesma, e é um jogo perigoso: pois eu jamais sei como vou terminar o que começara sem planejamento.  E mesmo que pareça que tudo foi organizado de modo circunferente, é algo simples: respiro - ligo o computador; respiro - abro a página em branco; -respiro – coloco os dedos no teclado; respiro – fecho os olhos; respiro – ouço a respiração da música aos meus ouvidos e esse respiratio é que inspira, e me aspira, e me preenche, e me transborda... Eu sou escritora, mas devia ser um “suspiro”: um som doce que mais se parece com uma oração, um som arfado incógnito e profundamente breve.    

(Publicada no Jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 01 de abril de 2013)
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segunda-feira, 25 de março de 2013

O Cravo Bem Temperado


Sinto-me enjoada. Tenho estado tão grávida de mim nos últimos dias que a ânsia de vômito é latente. Se eu pudesse, se enojar o leitor não fosse, vomitar-me-ia agora mesmo.  É que eu tenho a mania irritante de ser feliz e de viver cantando – ainda que para dentro – às vezes, canto para fora – baixinho, mas prefiro berrar para dentro mesmo... Sou, assim, panglossiana de espírito: para mim “tudo” é perfeito do jeito que é – ‘os fins justificam os meios’ – e somente por isso vivencio o meio na certeza de um fim justificado.  

Sou tão grávida de mim que transbordo e oh, céus!, não há santo que aguente quando eu começo a dissertar sobre isso. Pobre leitor: que dó – que dó – que dó... Mas o leitor não tem pena de mim, não quer saber se agora mesmo, enquanto leio o que eu escrevi, tenho piedade mesmo é desse ‘dó’ que tamborilou o texto como se uma bola fosse, e quicando em ritmo alucinado enfrenta a quentura do asfalto na hora quinze e depois estaciona aqui – no embaraçado destas linhas, pensando que encontrou a escala perfeita. Que dó!   

Mas o leitor não se importa comigo. O leitor quer devorar o texto com ganas de grande fome e ai de mim se o cardápio não estiver apetitoso... Não vou apetecer o texto, não vou simplificar  esse ‘dó’, não vou escrever um discurso compreensivo, não vou prosear liricamente. Não vou –  hoje estou enjoada – que dó – que dó – que dó...

Jactância. Culpa minha. Maldita palavra. Por que apareceu justo agora? Por que precisa afundar o meu ‘dó’ só para dizer que o meu barquinho acaba de ficar atolado na empáfia? Eu não me importo, já  estive atolada outras vezes e, além do mais, estou eu, aqui, afundada com esse ‘dó’. Ah, eu  tenho tanto dó!, tenho dó – tenha dó... tenhamos dó...   

Por Cristo, mas que diabo de ‘dó’ é esse que se amoleca dentro da minha cabeça? Já disse, não tenho talento para as grandezas – jamais farei desse dó um solfejo. Ainda que um prelúdio de Bach em seu ‘cravo bem temperado’ sopre lentamente aos meus ouvidos, causando-me uma sensação vertiginosa e terna... eu não seria capaz, Sebastian. Jamais seria.

Estou enamorada de mim agora. O enjoo passou. Porque quando ouço Bach, liberto-me; porque sinto-me em ebulição por ter uma orquestra dentro da cabeça e porque nessa orquestra eu posso identificar facilmente os sons das coisas pelas quais a vida vale a pena; porque esse ‘dó’ derramado no texto foi a melhor coisa que poderia me acontecer neste instante: paro de escrever para ouvi-lo. Não faço coisa alguma enquanto ouço esse dó sustenido – gosto de olhar para ele – de enxergá-lo e, enxergando-o, posso retribuir-lhe o toque, tocando-o com  infantil encantamento.

Não sei coisa alguma sobre música. Não quero saber. É transcendental para mim, é epifania pura, é nirvana... Depois de ouvir Bach não há o que me contamine; não há peso que não seja pena; não há pena capaz de condenar-me; não há condenação que me subjugue; não há jugo que eu não deboche; não há dor que eu não escarneça; eu rio e caçoo de minhas dores, e se não me contenho faço um samba de antíteses – a minha alegria é broto de tristeza – ai, que dó: que dó, que dó, que dó!

Não importa: o fim acabou de justificar o meio e nada mais importa – nem o início, nem o meio e tampouco o fim. Porque quando ouço Bach, nada mais importa –  quando ouço Bach, fico pronta para a morte.

(Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 25 de março de 2013).
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segunda-feira, 18 de março de 2013

Dance comigo até o fim do amor



Aconselho ao leitor molhar a ponta do dedo na língua e avançar a página, pois o que segue não é um relato digno de ser lido. Trata-te de uma confabulação de dar nó nos nervos. É que não sou muito boa em assobiar para fora – coisa que faço para dentro – coisa que provoca risos – eu não importo – também acho graça. Mas, de uns tempos para cá, descobri que eu também posso cantar para dentro. Por Cristo, por que eu não pensei nisso antes?

Acontece que outro dia eu estava quieta. Quietinha, debruçada no parapeito da janela, olhando o vai-e-vem das gentes, quando uma voz uníssona arrebatou-me de meus delírios incógnitos –  deixe-me quieta, estou cantando. – Cantando? –, perguntou com estranheza. Eu não respondi. Ora, será que as pessoas não sabem que a gente pode cantar para dentro? Não jugo, eu também não sabia.

Para dentro eu canto em muitas línguas e não desafino nunca. Não erro a letra, faço backing vocal, toco guitarra, sax e até violino eu sei tocar.  Para dentro eu grito e em frenesi sacolejo a cabeça grunhindo sons metálicos. Para dentro eu me lanço inteira no Jazz numa apresentação voluptuosa, como se Madeleine Peyroux eu fosse. Então, mergulho em cadência extraordinária e valso com o suporte microfônico: ‘dance with me to the end of love’ e depois traduzo da maneira que me apraz: dance comigo até as cortinas de nossos beijos se desgastarem/dance comigo outra vez e outra vez/ dance comigo mansamente e me dance por muito tempo/monte uma barraca de abrigo agora, embora toda linha esteja rasgada/dance comigo até o fim do amor...

Estou cantando ‘dance comigo até o fim do amor’ e Madeleine me diz que eu canto muito bem. Ah, Madeleine, eu queria mesmo era cantar para fora. Mas qual!? Não tenho talento para as grandezas. Um dom assim não é dado a qualquer um. A mim restou a injustiça da escrita: nada de aplausos, nada de gritos, nada de autógrafos e fotografias no aeroporto, nada de almoço e/ou jantares interrompidos para dar atenção aos fãs, nenhuma resposta imediata... Não posso ver de pronto a expressão do leitor, não posso ouvir o compasso de sua respiração entregando o desconforto ou o prazer... Não, Madeleine, eu não posso.

Neste momento eu penso em deixar de escrever para fora e dedicar-me a escrita intrínseca. Sim. E por que não!? Para dentro eu escreveria ‘Cem Anos de Solidão’; ‘O Apanhador no Campo de Centeio’, ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’, ‘A Rua dos Cataventos’... Na verdade, eu queria mesmo era ter sido o escritor Roger Martin du Gard porque eu, para dentro e também para fora, como ele, não sou como a abelha saqueadora que vai sugar o mel de uma flor, e depois de outra flor. Sou como o negro escaravelho que se enclausura no seio de uma única rosa e vive nela até que ela feche as pétalas sobre ele; e abafado neste aperto supremo, morre entre os braços da flor que elegeu.

A partir de agora eu só vou escrever para dentro. Serei um negro escaravelho a sugar o néctar de sua própria ânsia e esperar de si – de si só, a clausura, a letra, o ritmo, o poema, a busca, a espera, a recíproca,  a alegria, a dor, a decepção e a surpresa. Vou escrever dançando com  a pena e cantarei as canções que eu mesma compuser, vou dançar – cantando – até depois que o amor chegar ao fim. Vou escrever  - palavrinhas dançantes - alucinadamente e o Nobel eu vou ganhar...Ah, eu vou.  Vou, para dentro, enfim partir e, pela vez primeira, vou sem medo de voo. Porque o voo para dentro não se finda nunca.

(Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás
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segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Em estado de página

Amo essa página em branco, com sua enorme boca repleta de carnívoros dentes. Adoro esse entulho cibernético e gosto tanto de arrastar por ele palavras vãs, corrompidas, prostituídas – vulgares.  Sinto um prazer indizível em envergar muitas letras na tacanhez de minha escrita; de torturá-las no afã de meus anseios; de persegui-las como se isso fosse  inevitável;  arranhá-las com essas minhas garras de cacos de vidro, só para vê-las em um mosaico labiríntico de enlouquecer.

Adoro ver a dança das palavras na página branca, tentando encontrar a sintaxe ideal – a ligação – o verbo – a morphe perfeita – meu Deus, para quê? Para tecer tramas inquietas? Pensamentos dialéticos? Orações bombásticas de cunho psicossocial? Ou frases românticas da ideia lírica-surreal da vida?

Eu não levo jeito com as exatidões. A minha sabedoria é vegetal. Talvez, um dia,  quando estiver pronta para ser exata como uma rocha, terei também a sabedoria mineral. Mas por enquanto só alcanço as coisas que muitos chamam de ilusões... Nestas, fecho-me como a espuma de um mar furta-cor.

Deve ser porque eu vejo essa folha branca como quem  veste a ilação de um branco infindo e, ao vesti-lo, desnuda-se completamente. Eu amo a página em branco porque ela é feita de vazio e eu gosto mais de vazios do que de cheios – porque o vazio é maior – é quase infinito. O vazio é da  altura e da cor que eu quero – afundo a página com as pontas dos meus dedos e  desperto o atropelamento das palavras – a imensidão desse atropelo é quase azul.

Sigo, um tanto dementada com a minha pena às costas, a cavar nessa folha vestígios da escrita que terei. Vou, enquanto o dia envelhece, buscar relevâncias para pintar o meu texto e não encontro fita alguma capaz de medi-la, porque que a importância de uma coisa não se mede com fita, tampouco com barômetros. A importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produz e eu estou enamorada por essa página branca.  Porque ela me contrai uma visão fontana do instante: e agora?

Porque o olhar dessa folha me recita tantas perspectivas – tantas que enlouqueço e viajo – e viajar nessa página é algo que gosto mais do que sobrevoar sequoias. Porque há nessa página um comportamento de eternidade – fui criada nas nuvens e aprendi a gostar primeiro das coisas intocáveis, abstratas, celestiais – as terrenas vieram muito tempo depois, pois só quem vive em estado de página  é que pode enxergar as coisas sem o feitio real das coisas.

Vou deixar essa folha me amanhecer... e, depois, o que farei com a manhã desabrochada de vazios no furo bonito do meu olhar? Tenho em mim esse atraso de nascença real. Eu fui aprontada para gostar de palavrinhas-mágicas na página em branco. Sou abastada de ser feliz por isso – a minha página em branco é maior do que o mundo – um mundo vazio – repleto de perspectivas. É no cheiro dessa página que eu  me alucino, porque onde eu não estou, ela me encontra... Sempre.

Essa página me desbrava primeiro e me alinha depois, junto ao silêncio da sua face “poli-expressiva” e  que, por mais que eu queira, jamais conseguirei fotografar com os meus dedos pouco hábeis. Sendo assim, o melhor jeito que encontrei de entender os devaneios da página, de  encontrar-me nela - foi fazendo exatamente o contrário - deixei-a padecer de mim até me sujar de branco.  E é de branco que escrevo uma coisa ou outra,  a fim de dizer todas  - ou, pelo menos, algumas.  Porque desexplicar  o mundo é tão importante quanto  o escuro que expõe a existência dos pirilampos.

(Publicado no Jornal Diário da Manhã DMRevista - Goiânia - Goiás em 04 de fevereiro de 2013)
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Quadrado


Tenho pensado tão quadrado nos últimos dias. É como se a minha mente de uma hora para outra cambaleasse no interior de quatro paredes e paredes e mais paredes se formassem por todos os cantos se transformando em quadrados vezes quadrados. Paredes são às coisas nas quais a minha mente tem se defrontado todos os dias. Paredes que começam num canto – um canto que termina em parede – tudo quadrado – tantas paredes!

Há um quadrado se figurando diante de mim agora. É um belo quadrado. Como um daqueles quadrados mágicos de Albrecht Dürer: cinza e tão imenso que não cabe no espaço da visão. Uma janela quadrada. Quadrada a vidraça montada com blocos unicolores de um tom cinza invernal e emoldurada por um quadrado feito de um metal bonito – tão bonito que ficou quadrado – um quadrado cinza que jamais se abre ao meio no intuito de aspirar a poeira das gentes, a poeira dos tempos, a poeira solstícia de um fim tarde sem fim.

É uma janela quadrada fechada e com quadradinhos numerados. Não importa: de cima para baixo; de baixo para cima; da esquerda para direita; da direita para a esquerda; as duas diagonais; a soma dos 4 números que ficam nos cantos do quadrado; a soma dos 4 números nas 4 casas centrais... Modo algum importa, pois a soma de todos os quadros dessa janela dará sempre o mesmo resultado.

Tudo quadrado – fechado dentro de um resultado tão solúvel e, ao mesmo tempo, igualmente insolúvel em sua razão de existir. Para que servem essas janelas que mais se parecem com paredes instransponíveis que agora se levantam, uma após a outra, aqui na sala-de-estar da minha mente?

Eu já decifrei o quadrado. Não há mistério algum nele capaz de me amedrontar além do fato de saber que a sua existência é um fato e que não interessa para onde eu vá, estarei peremptoriamente diante dessas janelas cinzentas fechadas e tão quadradas dentro da razão de serem apenas janelas-paredes-quadradas que se erguem diante de mim.

Se assim é, se o meu universo ficou 4 x 4; se a minha mente embarcou na ideia fixa de que todas às somas darão o mesmo resultado; se de repente não há mais portas; se nesse exato momento eu me vejo dentro desse quadrado hipermágico e dele penso que não vou sair jamais; se o meu mundo agora é rodeado por janelas que se transformam em paredes cinzas... Se assim é: eu que aprenda a me teletransportar. (Texto: Quadrado - de Clara Dawn - publicado no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia em 08 de dezembro de 2014)

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segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

O fio

         A vida é como aquele fio condutor de eletricidade que atravessa o Lago dos Pintados no Vale das Quimeras. De vez em sempre, vem um martin-pescador e pousa no fio e ali permanece: de cauda em riste e a cabeça baixa a vislumbrar diminutos peixes. E espera e mergulha e volta ao fio sem coisa alguma no bico... e depois alça um voo cantante...

Não sei se aquilo é um canto, parece mais o rumor de um vinil que teve a desfaçatez de emperrar enquanto a agulha da vitrola acariciava a voz “óperante” de Rossini.
Um silvo longo e pressagioso; uma tentativa frustrada de tocar notas perfeitas no arranjo infeliz de sua desafortunada pescaria - infortúnio que faz o fio titubear - o fio sempre balança. Balança, mas a vida continua mesmo assim, atraindo e repelindo partículas de energia – positivas e negativas.

Ocorre- e com certa frequência - ao fio que alguns pássaros pousam e cantam ali todos os dias; outros apenas pousam e seguidamente partem para sempre; outros fazem seu espetáculo muito acima do alcance do fio, numa longitude tamanha que é possível a ilusão de os estar enxergando enquanto se queima a vista no sol da hora doze.

Na hora doze, depois de uma esplêndida manhã outonal, um pássaro dissoluto pousou no fio e fez um estrago danado – depositou seus dejetos intestinais, empesteando o condutor de maneira enervada. Coisa horrível de se ver. Cenário que cobriu o fio com um aspecto asqueroso – nada tateante – repulsivo... E pensar que àquela hora ainda era a hora doze, arrepia-me. A hora doze: tarde demais para a chegada, cedo demais para a partida. Oh, céus! Oh, fio! Oh, hora! Oh, azar!

Mas o fio não deixou de ser fio, por isso. É o mesmo salutante fio de energia. Às aves é que são volúveis - vezes vêm, vezes vão, vezes cantam, vezes embelezam e por mais belas e encantadoras que sejam, sempre e sempre, deixam os resíduos de seus peculiares prazeres sobre o invólucro de plástico que veste a eletricidade – que veste a vida.

Há uma característica especial naquele fio que atravessa o Lago dos Pintados. Ele possui três luminárias que em noites-pós-chuva ficam acesas para atrair mariposas, e estas servem de deliciosos petiscos que os pintados adoram comer – depois que elas já estão nas barriguinhas dos lambaris. Contudo, o fato é o fio. O fio condutor de eletricidade: que acende as luminárias... luminárias que atraem mariposas... mariposas que atraem lambaris... lambaris que atraem pintados...É a vida seguindo, semeando. Ora atraída, ora atraindo: receptáculo transbordante de energias.

Há pequeninas luminárias despencando do fio nesse instante. Pendem como cachos de uvas e soberbas dão risos dourados a expor uma luz que a mente humana não sabe precisar. Faz-se necessário que o fio esteja conectado a uma força maior para, enfim, irradiar energia e acender lâmpadas. Lâmpadas que não impedirão, jamais, que pássaros dissolutos pousem no fio, mas a claridade e o calor serão suficientes para impedi-los de construir ninhos.
(Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 03 de dezembro de 2012).
Fonte da imagem: Impressões
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segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Foge, Tatua, foge...


Tudo certo para o desjejum. Um pouco mais tarde, às nove horas: leite achocolatado com um suculento sanduíche de atum. Tinha imaginado que, depois do café, poderia levá-lo para cortar os cabelos, fazer a barba e, quem sabe, lhe compraria um par de  tênis e uma bonita camisa com novos tons de xadrez. A que ele tem usado, feito de tecido tipo flanela, já está bastante surrada.

Mas ele não apareceu. Na caneca, sobre o leite, boiava uma nata escura e asquerosa; o cheiro, outrora salivante de atum defumado, agora putrefez o ar oprimido da casa – ambiente pequeno demais para guarnecer a espera – e olha insistentemente pela porta, como se esse gesto fosse capaz de fazê-lo surgir na esquina: andando um pouco encurvado por causa do peso da mochila que carrega nas costas desde sempre; o jeans encardido e justo demais nas panturrilhas, a velha camisa xadrez, os tênis cansados de carregar o mesmo corpo. O olhar cabisbaixo mirando as passadas das longas pernas – olha para a porta e se depara com a imagem de sua mãe, como se ela fosse parte da porta... A porta que nunca se fecha.

Não. Ele não está na esquina. Outra vez, não veio. Não adianta subjugar a porta. Ele não virá. Não virá mesmo que lhe compre as estrelas, mesmo que lhe cubra de mimos, mesmo que arranque a porta com os seus portais, mesmo que arranque os lábios para escancarar um riso afortunado... Mesmo assim, ele não virá. Porque na sua perspectiva de vida emboscou-se nas alegrias de um ‘não o sei o que’ maior do que todas as insígnias da educação maternal.

Emboscou-se. Sim, com a ciência de quem acredita saber exatamente o que faz da vida.  Com o conceito daqueles que se firmam na ideia de que possuem a capacidade de entrar e sair de qualquer tipo de situação - por mais viciosa que a situação seja. Armou para si uma rede, sabendo de antemão  que a rede que armava  é do tipo que possui nós indesatáveis.

Quando era criança, não tinha um nome – era Filho, o amado filho. Com o tempo chamava a si mesmo de Tatua, às vezes de Filho, às vezes não se chamava - era riso gargalhante como se dissesse “meu nome é felicidade”. Isso foi há muito tempo, enquanto ele ainda fugia de casa para “torar e aparar pipas”. Num tempo em que ele queria voar como se um pássaro fosse. Um pássaro cuja plumagem fora arqueada com varetinhas de piaçaba e cobertas com coloridos papeis de seda. Sua cauda enorme e esvoaçante rasgaria o céu e desenharia nas nuvens as letras do seu nome... Em sua imaginação seria perseguido por uma águia cruel e ele poderia ouvir os gritos alucinantes: “Fuja, Tatua, fuja...”.

Ele não fugiria, enfrentaria a águia e ela não seria forte o bastante para lhe impedir de alcançar o seu sonho. O sonho a que sua mente o capacitou – o sonho de voar alto – tão alto que nem mesmo uma águia seria capaz de alcançar, tão alto que faria voos rasantes nas planícies celestiais e nada, nem ninguém o demoveria de sua obstinação - a obstinação de escrever o seu nome nas alturas.

Mas o tempo levou o menino, levou a pipa, levou o riso debochado de criança feliz, levou o olhar chamuscado de brilho pelas grandezas das pequenas e rotineiras conquistas, levou o desiderato da boa convivência, cobriu as varetinhas de piaçaba com um tom cinza e sua enorme e esvoaçante cauda está repleta de nós. Emboscado, entorpecido... perdido, perdido.. Perdido: pássaro nobre voando com abutres e se alimentando de morte.

Não é mais um menino, não é mais um pássaro/pipa... é uma parede branca com as marcas encardidas no lugar que antes era de um quadro. Um quadro orquestrado de uma imagem sonora e vivaz. Um quadro repleto de informações inteligíveis, um quadro reflexivo – um quadro que sua mãe amava ver na parede... Mas a parede está vazia – e a única revelação que ela expressa é o pânico de alguém que descobriu que há águias que não se pode vencer sozinho. Assim, outra vez ouve os mesmos gritos: “Foge, Tatua, foge”.


(Quando enviei essa crônica para o jornal, no dia 14 de agosto, eu não poderia imaginar que o o meu filho (o Tatua) estava com a sua mala pronta. E no dia 17 de agosto, depois de passar 45 dias em Franco Surto Psicótico ele se matou. Por coincidência ou não, Arthur nasceu no dia 26 de junho - Dia Internacional de Combate ao Uso de Drogas. Foi instituído pela ONU em 1987, seis anos depois o meu Arthur nasceu. Tinha a vida normal de jovem de classe média com todas as oportunidades de ser bem sucedido e seria, caso não fosse sua paixão por Cannabis Sativa (a maconha). Usou-a durante cinco anos e por ser pré-disposto geneticamente a esquizofrenia, surtou por duas vezes em seis meses. Do primeiro surto ficou livre com trinta dias e ficou "limpo" por cinco meses e 27 dias. Mas no dia do seu aniversário quis desafiar a doença e recaiu. Bastou apenas um cigarro de maconha para que ele entrasse em surto outra vez e deste surto não se livrou nem mesmo com o mais forte dos antipsicóticos e por fim, não suportando as terríveis vozes que o atormentavam dia e noite, instigando-o ao suicídio, assim o fez. Ele deixou o rascunho de um livro onde narra toda a sua experiencia com as drogas e o transtorno mental e uma bandeira: MACONHA FAZ MAL SIM.  Ele jamais sentiu vergonha em dizer que era um adicto com transtorno mental. Frequentava os Narcóticos Anônimos e se orgulhava publicamente em sua página no Facebook em viver limpo, SÓ POR HOJE.  - Publicado no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás, em 26 de novembro de 2012 - Republicado em 19 de agosto de 2013 - LEIA TAMBÉM: SÓ POR HOJE - texto elucidativo sobre esses acontecimentos).

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Um salto para um dia de fúria

 
Debruço-me no parapeito da janela, a olhar as gentes indo e vindo: de dentro para fora, de fora para dentro, de dentro para dentro... Quando me debruço no parapeito da janela, não importa a estação do ano em que eu me encontre, tudo faz tanto tempo e qualquer coisa que eu venha escrever a partir dali terá traços de saudade. A saudade de um senso comum insustentável de acreditar que dias melhores chegarão, mesmo que a vida prossiga debalde com seus muros que nunca se deitam.
Permaneço de frente à janela, enquanto escrevo e tenho Thomas Jefferson debruçado sobre os meus joelhos, observando o indo-e-vindo do meu olhar: janela e texto. Ouço suas palavras místicas, fluídas do Iluminismo mais radical da Terra, e o que eu sinto a respeito dos recônditos solitários da mente de Jefferson é uma profunda ternura pessoal, uma irmandade e uma vontade doída, por mais vã que possa ser, de que seria possível guardar a rara beleza da crença de que tudo, tudo mesmo, dará bem certo. E quando o meu olhar volta da janela e mira o texto, vejo um estar tão profundo dentro de mim que desejo ali permanecer até que uma epifania aconteça enfim.
Na mente, a lembrança de uma mulher que estava ‘indo’: cabeça baixa, arrastando o peso de suas enormes mãos – mãos que seguravam, com benevolência, tudo o que possuía. Talvez ela não quisesse ser assim tão beneplácita, como tem sido no tempo chamado hoje. É que antes ela sentia muita raiva no instante que se defrontava com situações que não conseguia administrar. Ora, a raiva é propulsora e nos alavanca – dá-nos coragem para dizer e agir. E aquela mulher, por certo, dizia e agia sem medo: indo ou vindo, sempre para fora e nunca para dentro... Um ser que possuía uma identidade – talvez insuportável –, mas era essencialmente humano em sua razão de ser apenas humano.
Mas ela foi vencida por uma brandura acintosa, uma benevolência jeffersoniana inacreditável lhe encharcara os ossos, constituindo, assim, a sua melhor virtude e o seu maior defeito. A culpa não é da mulher, a culpa é de Thomas Jefferson, que morreu acreditando na benevolência humana; que fez uma releitura da Bíblia e narrou os eventos essenciais da vida de Jesus expurgados de todas as menções sobrenaturais. Se uma lição de moral foi incorporada em um milagre, foi a lição e não o milagre, segundo Jefferson, que sobreviveu, pois ele entendia o papel de Jesus como um grande exemplo de moral e da boa vontade para com o outro, não como um curandeiro. Por Cristo, Jefferson, tenha piedade: a pobre mulher precisa é de um milagre.
Agora, debruço eu sobre os joelhos de Jefferson, mirando o indo-e-vindo do seu olhar: moral e boa vontade para com o outro; ocorreu-me a ideia de uma rendição silenciosa aos exemplos da moral de Cristo, com o objetivo de encontrar, senão a felicidade, pelo menos a harmonia... Mas, qual!?,Cristo jamais se rendeu aos abusos da natureza humana – Cristo, literalmente, chutou o pau da barraca, quando tentaram fazer de sua casa comércio... Sendo assim, erga a cabeça, mulher! Coloque Jefferson na estante, depois quebre uns pratos e vá com toda a fúria que puder saltitar a vida porque não há, no mundo, muros inflexíveis. 
 
(Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 29 de outubro de 2012). 
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segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Peso-de-papel


Deixei que palavras surgissem como espectros sob as pontas dos meus dedos no tamborilar deste texto. Em manhãs sem sol, não importa o que eu faça – nada me inspira – um peso-de-papel é, apenas, pedra e eu fico irremediavelmente vazia. O violino está inerte num canto da inspiração – a música não flui. Toca, violino: entoa acordes de Bach... Continua inerte. A figueira ficou opaca esta manhã, pois os pássaros-pretos também não apareceram para cantar enquanto saboreiam figos maduros, o vento ruidoso chicoteia com veemência as folhas dos buritis, cantando um chiado como de uma frequência de rádio, mal sintonizada.

Os cães ladram de muito longe numa ladainha tosca, por causa do rumor de uma motosserra. Ela está berrando histérica, enquanto derruba a Sibipuruna amarelinha. Barulho terrível é o da motosserra zunindo, como um besouro maluco, dissonando a sinfonia do campo. Ah, a sinfonia do campo! Algo que sempre me inspira, mas não nesta manhã “desensolarada”, em que a obrigação da escrita semanal é um peso-de-papel a me subjugar espólios de um fado que não me pertence – mesmo que comigo tenha nascido.

Levo comigo esse peso-de-papel. Levo comigo um peso-de-papel, ou será que o que eu levo mesmo é o peso do papel? Desse meu papel no enredo da vida... Mas, qual?, o enredo da vida é espetacular: aqui, agora, neste momento há cascas de cigarras nas grades da janela e o vento as balança como se fossem vestidos de voile no varal. Sinto arder às narinas no afã de um choro abstrato. Coisa que me ocorre quando defronto com um soberbo encantamento. Vislumbro nessa hora a sensacional inspeção de um espetáculo fenomenal: cascas secas de cigarras – roupinhas transparentes de uma vida ínfima – de uma vivência sonora – até a exaustão – até a morte. Ah, eu adoraria passar pela vida numa sonoridade licenciosa e em branca roupagem adormecer enfim.

Enfim, o vento retira as cascas de cigarras das grades e as sopra para dentro da casa. Um soprar fortuito para dentro. Um sopro divino a dar vida às cascas de cigarras; a folhear os papeis que jaziam sobre a mesa e movendo com simpática selvageria o peso-de-papel. Oh, céus, eu poderia jurar que o peso-de-papel era o suficiente para manter os meus papeis em ordem – palavras justificadas num retângulo perfeito – tudo em ordem. Mas o vento é como as palavras: ambos não conhecem o curso de um dia bom ou ruim. A cada vendaval e a cada palavra escrita, algo permanece intocado, algo fica inerte nos vãos do pensamento e das coisas – algo como um centro inteiro em si – algo “unimúltiplo” e fechado – um peso-de-papel que aprisiona papeis e algumas palavras – Algumas. Pois as outras vão brincar com o vento.  

Há neste texto um monte de palavras, há neste texto tantos símbolos, há neste texto um hermetismo tacanho, há um peso-de-papel a atabalhoar os meus sentidos. Há tantas vozes... tantas, tantas que nem mesmo sei distingui-las, há regras loucas de uma gramática sem freios, há o paradoxo da manhã sem sol que não me inspira, mas me inspira tanto... Há, neste texto, eu em desacordo com tudo que nele há.

Em desacordo com todas as palavras. Porque as palavras, ora me inspiram com uma mão, ora me esvaziam com a outra. As palavras dão tudo de si sem nada perder. As palavras estão impregnadas na minha vida como um inseto envolto em um âmbar. Mas são tantos âmbares por aí, disfarçados em pesos-de-papel – palavras aprisionadas num simulacro descarado – palavras sem ter porquê. Ah, as palavras! As palavras são as muletas de um velhinho que mora na minha personalidade e que pensa que suas muletas são acordes de violino – quando a música toca – o velho se alegra e eu me transformo em verso e prosa.

(Crônica publicada no jornal Diário da Manhã - DM-Revista - Goiânia - Goiás em 08 de outubro de 2012).
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segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Casa de ferreiro, espeto de pau



Por minha causa, deu um riso muito maior do que a boca poderia dar. Por minha causa, deu passadas maiores do que as pernas seriam capazes, e foi por minha causa que abriu os braços numa extensão além dos limites humanos.

As flores chegaram numa cesta emoldurada por um laço de fita de cetim azul. Na fita, o meu nome bordado com letrinhas douradas. Não havia bilhete – guardei a cesta – as flores feneceram – porque mortas estavam – o laço de fita perdeu, ora, a beleza, debruçado sobre flores cadavéricas – visão horrenda! - o lixo, então, fartou-se.

Dias depois, mais flores numa cesta com frutas exóticas, outro laço de fita, desta vez branco com o bordado amarelo... sem remetente. Não comi as frutas, não quis ofertá-las a outrem – apodreceram no fundo de uma gaveta – agora poderiam servir para alguma coisa – adubo – as flores também.

Duas cestas bonitas de um não sei quem... Os laços de fita? Servirão para alguma coisa... aposto que sim. Guardei-os em um canto qualquer. Afinal, tudo aquilo poderia ser coisa do amado – dizia que não –deixa pra lá.

Tempos depois, trazida por um motoboy, recebo uma pasta com dezenas de recortes de jornais. Dentro dela, textos meus, um laço de fita vermelho com um bordado azul e um pedido para autografar os recortes. Perguntei ao moço quem enviara a pasta, ele não disse. Tudo bem, não era a primeira pessoa a me mandar recortes de jornais para eu autografar – autografei – todos eles – dezenas, sim, autografei.

Enfim, um e-mail, alguém chamado GG, disse-me que encontrou Alétheia num banco de praça... dessa mania que eu tenho de crossbook – espalhei uma centena de livros por aí. GG confirmou ser aquele quem enviara as cestas e a pasta. Disse que se identificava muito com um de meus personagens, aliás, GG obsedou a ideia de que era um de meus personagens – mas não disse qual. Ora, pensei logo, ‘maluco assim, só pode ser o assassino’.

Temi-o e passei a ignorar seus contatos e a recusar seus presentes. Desapareceu. Eu guardei o episódio na lembrança e por causa dele parei com o crossbook. Mas num certo dia recebo a ligação de uma pessoa dizendo ser jornalista e que queria me entrevistar devido à homenagem que o Goiânia Ouro estava me fazendo em decorrência da edição esgotada de Alétheia. Marcamos para o outro dia, no meu trabalho.

A pessoa chegou na hora marcada... Marcada, também, ficou a sua aparência em minhas lembranças para sempre: horrível e repulsiva... tentei não demonstrar espanto, embora fosse humanamente impossível. Ele carregava uma maleta daquelas que se usa para guardar instrumentos. Ele me fez perguntas sobre Alétheia. Perguntas que eu não conseguia responder, pois não me livrara da curiosidade do que lhe havia acontecido para deformar seu crânio. Ele tinha a cabeça e os membros enormes. – Hiperparatiroidismo – disse-me ele, sem que eu perguntasse, e continuou – estou assim desde os trinta anos. Depois, pegou sua maleta e a colocou sobre a mesa, retirando dela uma gaita. Eu ri - uma gaita num porta-clarineta. Ele ignorou o meu riso e começou a tocar Asa Branca em sua gaita e o meu riso emudeceu – então todos os pelos do meu corpo ouriçaram – sem dúvida alguma, ele é um artista. Pensei.

Terminou de tocar, guardou a gaita, agradeceu-me a entrevista e ao se despedir disse-me: “O casebre de Sebastiano Vicenzo tornou-se o meu refúgio secreto” e partiu, deixando-me vazia de sentimentos e oca de palavras... Levei um tempo para entender que o falso jornalista era o GG e ao mencionar Sebastiano Vicenzo, personagem de Alétheia, violinista que teve 80% do corpo queimado, mas voltou a tocar depois de encontrar um amigo, também ele, GG, estava voltando a tocar. Encontrara em mim a força necessária para isso.

Nesse dia compreendi o real valor da literatura e todo o“por que eu faço isso?” finalmente teve resposta e, embora o tema principal do livro seja o preconceito e a discriminação, ao parar com o crossbook, eu me tornara vítima do meu tão bem defendido “despreconceito”: casa de ferreiro, espeto de pau.
(Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 23 de setembro de 2012).
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