Deixei que palavras surgissem como espectros sob
as pontas dos meus dedos no tamborilar deste texto. Em manhãs sem sol, não
importa o que eu faça – nada me inspira – um peso-de-papel é, apenas, pedra e
eu fico irremediavelmente vazia. O violino está inerte num canto da inspiração
– a música não flui. Toca, violino: entoa acordes de Bach... Continua inerte. A
figueira ficou opaca esta manhã, pois os pássaros-pretos também não apareceram
para cantar enquanto saboreiam figos maduros, o vento ruidoso chicoteia com
veemência as folhas dos buritis, cantando um chiado como de uma frequência de
rádio, mal sintonizada.
Os cães ladram de muito longe numa ladainha tosca,
por causa do rumor de uma motosserra. Ela está berrando histérica, enquanto
derruba a Sibipuruna amarelinha. Barulho terrível é o da motosserra zunindo,
como um besouro maluco, dissonando a sinfonia do campo. Ah, a sinfonia do
campo! Algo que sempre me inspira, mas não nesta manhã “desensolarada”, em que
a obrigação da escrita semanal é um peso-de-papel a me subjugar espólios de um
fado que não me pertence – mesmo que comigo tenha nascido.
Levo comigo esse peso-de-papel. Levo comigo um
peso-de-papel, ou será que o que eu levo mesmo é o peso do papel? Desse meu
papel no enredo da vida... Mas, qual?, o enredo da vida é espetacular: aqui,
agora, neste momento há cascas de cigarras nas grades da janela e o vento as
balança como se fossem vestidos de voile no varal. Sinto arder às narinas no
afã de um choro abstrato. Coisa que me ocorre quando defronto com um soberbo
encantamento. Vislumbro nessa hora a sensacional inspeção de um espetáculo
fenomenal: cascas secas de cigarras – roupinhas transparentes de uma vida
ínfima – de uma vivência sonora – até a exaustão – até a morte. Ah, eu adoraria
passar pela vida numa sonoridade licenciosa e em branca roupagem adormecer
enfim.
Enfim, o vento retira as cascas de cigarras das
grades e as sopra para dentro da casa. Um soprar fortuito para dentro. Um sopro
divino a dar vida às cascas de cigarras; a folhear os papeis que jaziam sobre a
mesa e movendo com simpática selvageria o peso-de-papel. Oh, céus, eu poderia
jurar que o peso-de-papel era o suficiente para manter os meus papeis em ordem –
palavras justificadas num retângulo perfeito – tudo em ordem. Mas o vento é
como as palavras: ambos não conhecem o curso de um dia bom ou ruim. A cada
vendaval e a cada palavra escrita, algo permanece intocado, algo fica inerte
nos vãos do pensamento e das coisas – algo como um centro inteiro em si – algo
“unimúltiplo” e fechado – um peso-de-papel que aprisiona papeis e algumas
palavras – Algumas. Pois as outras vão brincar com o vento.
Há neste texto um monte de palavras, há neste
texto tantos símbolos, há neste texto um hermetismo tacanho, há um
peso-de-papel a atabalhoar os meus sentidos. Há tantas vozes... tantas, tantas
que nem mesmo sei distingui-las, há regras loucas de uma gramática sem freios,
há o paradoxo da manhã sem sol que não me inspira, mas me inspira tanto... Há,
neste texto, eu em desacordo com tudo que nele há.
Em desacordo com todas as palavras. Porque as
palavras, ora me inspiram com uma mão, ora me esvaziam com a outra. As palavras
dão tudo de si sem nada perder. As palavras estão impregnadas na minha vida
como um inseto envolto em um âmbar. Mas são tantos âmbares por aí, disfarçados
em pesos-de-papel – palavras aprisionadas num simulacro descarado – palavras
sem ter porquê. Ah, as palavras! As palavras são as muletas de um velhinho que
mora na minha personalidade e que pensa que suas muletas são acordes de
violino – quando a música toca – o velho se alegra e eu me transformo em verso
e prosa.
(Crônica publicada no jornal Diário da Manhã - DM-Revista - Goiânia - Goiás em 08 de outubro de 2012).
A insustentável leveza do peso de Clara
ResponderExcluir(Texto enviado a 9 de outubro para o Diário da Manhã, mas, como não o publicaram, vai aqui primeiro o que era para ser segundo. Era para ser uma surpresa. Surpreso fiquei eu.)
Como tantas vezes antes, mergulhei nas palavras feitas de alvorecer, e, como sempre, a sensação foi maravilhosa. Mulher e escritora, mãe e trabalhadora, um ser completo, que se mostresconde nos textos que produz. Clara é cósmica, não está restrita apenas ao estado onde nasceu e que ama de paixão. Não. Ela é uma cidadã do mundo, capaz de misturar num prato agradável ingredientes aparentemente estranhos entre si: junta a Casa Velha da Ponte e as Sibipirunas em flor aos acordes de Bach e às canções de Paul McCartney. E nós, seus leitores, nos alimentamos de seu pão cultural, mas queremos mais e mais a cada banquete. Clara vicia. Seduz, como quem não quer nada. E cria uma legião de fãs fieis e leais.
Esse texto trata de pesos, não apenas o “...de-papel” mas também a carga da aparente falta de inspiração, algo que atormenta vez por outra até mesmo os maiores gênios. Mas, assim como o nosso maior poeta certa vez produziu um escrito maravilhoso a partir de uma suposta ausência de inspiração, a musa goiana também o faz, com leveza paradoxal. Drummond aprovaria.
Mas o que faz dessa artista um ser que acredita não saber o que escrever? Tendo a alvorada no nome, são a manhã “desensolarada” e a “obrigação da escrita semanal” fatores de encasulamento dessa goianiense que recupera as energias em fins de semana no campo, em meio aos encantos naturais e junto a um ser equino que lhe pertence – ou pertence ela ao animal que a adotou como dona?
Subitamente, opera-se o milagre natural a quem nasceu para a Arte: Clara descobre que o texto que julgara impossível estava ali, o tempo todo, ela apenas não percebera seu oferecimento, “transfigure-me em palavras e compartilhe-me com pessoas de bom gosto”, parece dizer a crônica desde sempre dentro dela.
E, entre cascas de cigarras sopradas pelo vento, a cronista efetiva sua unimultiplicidade, “onde cada ser humano é sozinho”, e se sente em casa no vasto grupo chamado Humanidade. Em cada texto há muitas vozes, muitos símbolos, em palavras que preenchem e esvaziam, que têm cor e cheiro numa sinestesia absurda e ao mesmo tempo coerente. Isso é Clara Dawn. Mas ela é muito mais, e os textos ainda por escrever mostrarão isso. Que venham, muitos, que eu – e tantos outros – tenho olhos para ver.
Celso Moraes é, com orgulho, amigo e leitor de Clara Dawn.