segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Pedra de Bolonha


Nuvenzinhas cinzentas e vaporosas se formaram no horizonte. Era o prenúncio de uma borrasca, não de chuva, mas do estado de espírito... e, oh, Céus!, outra vez? Não demorou muito para que uma chuva esplêndida caísse sobre os ânimos em espasmos de murmúrios... A ópera estava apenas começando.

Lá fora, o ar refrescante trazia em haustos o perfume que das plantas exalava. Era uma fascinante alvorada, talvez a mais fascinante da Terra! O bosque estava coalhado de orvalho, teias de aranha, luminosas por causa da garoa, ornavam o capim daquele campo descortinado pelos primeiros raios de sol...

Dá-se com a má vontade para com o outro o mesmo que com a preguiça. A má vontade em si é uma espécie de preguiça. A natureza do ser é indolente, mas quando há um pouquinho de esforço para compreender o outro, todas as gentes nos parecem mais agradáveis. Pessoa alguma conhece a extensão de suas forças se não colocá-la à prova... Há de se ter para com o outro a mesma boa vontade que Deus nos dispensa: o momento em que estamos mais felizes é quando Ele nos deixa vagar por nossas ilusões...

Há uma ilusão tocando dentro de mim agora. Há vozes clamando no meu deserto interior enquanto a manhã desabrocha úmida do lado de fora da minha janela. A ópera “How Can I Go On” – “Como posso continuar?” –, cantada por Freddie Mercury e Montserrat Caballé, leva-me ao Céu. Embora eu esteja arrojada à terra como se um raio  tivesse me atingido, a melodia me arrebata com a força de um anjo – sensível, todavia imponente –, livrando-me de todas as confusões mentais. Livrando o meu corpo do cansaço, da dor e elevando a minha alma às profundezas inabaláveis de um mar. Paradoxal, sim, deveras.  

Nesse mar, levo comigo a minha lanterna mágica, como aqueles antigos retroprojetores que expõem figuras e escritas na parede. Levo comigo a minha pedra de Bolonha que, após ter sido exposta ao sol, absorve os seus raios e reluz por algum tempo. Ocorre comigo a mesma coisa quando ouço música: a dor fenece, o mau humor é dizimado e a vida é coisa maravilhosa.

A música é a “criatura” mais benfazeja da Terra: sempre solícita e, por onde toca, toca a felicidade ou a tristeza – depende da razão da música. Sim, o quanto eu me adoro, desde que a música me toque. O quanto o outro me adora e eu o adoro, desde que a música nos toque.

Estimo ser verossímil o que dizem a respeito do poder mágico da música medieval e barroca, bem como descreveu Samuel ao relatar que, quando Davi tocava sua harpa, os maus espíritos abandonavam o rei Saul – é o poder curador da música, é a pedra de Bolonha a energizar a alma com sua benevolente graça musical.

Livrai-me, oh, Deus!, dessas más vontades amarradas ao pescoço, porque lá fora é manhã de sol e aqui dentro, enquanto ouço essa ópera, vivo instantes tão felizes como aqueles reservados aos Seus eleitos. Aconteça o que acontecer, jamais direi que não experimentei a felicidade. A felicidade mais pura da vida – o tormento maravilhoso da música. Enquanto ela toca, eu me sinto... Como poderia ter imaginado, quando elegi a música para sostenir as minhas aspirações literárias, que ela estava tão perto do Céu?

É a música, para mim, o talento mais útil e belo sobre a Terra. Desde este momento, toda a natureza em si e até mesmo a velha ponte de madeira podem seguir tranquilos a sua jornada, que para mim já não há mais mundos: o universo inteiro desapareceu e eu não sou mais humana... Sou órbita ao redor do som.

(publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista -Goiânia, Goiás em 30 de julho 2012)
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