Nuvenzinhas
cinzentas e vaporosas se formaram no horizonte. Era o prenúncio de uma
borrasca, não de chuva, mas do estado de espírito... e, oh, Céus!, outra vez? Não
demorou muito para que uma chuva esplêndida caísse sobre os ânimos em espasmos
de murmúrios... A ópera estava apenas começando.
Lá
fora, o ar refrescante trazia em haustos o perfume que das plantas exalava. Era
uma fascinante alvorada, talvez a mais fascinante da Terra! O bosque estava
coalhado de orvalho, teias de aranha, luminosas por causa da garoa, ornavam o
capim daquele campo descortinado pelos primeiros raios de sol...
Dá-se
com a má vontade para com o outro o mesmo que com a preguiça. A má vontade em
si é uma espécie de preguiça. A natureza do ser é indolente, mas quando há um
pouquinho de esforço para compreender o outro, todas as gentes nos parecem mais
agradáveis. Pessoa alguma conhece a extensão de suas forças se não colocá-la à
prova... Há de se ter para com o outro a mesma boa vontade que Deus nos dispensa:
o momento em que estamos mais felizes é quando Ele nos deixa vagar por nossas
ilusões...
Há
uma ilusão tocando dentro de mim agora. Há vozes clamando no meu deserto
interior enquanto a manhã desabrocha úmida do lado de fora da minha janela. A
ópera “How Can I Go On” – “Como posso continuar?” –, cantada por Freddie
Mercury e Montserrat Caballé, leva-me ao Céu.
Embora eu esteja arrojada à terra como se um raio tivesse me atingido, a melodia me arrebata
com a força de um anjo – sensível, todavia imponente –, livrando-me de todas as
confusões mentais. Livrando o meu corpo do cansaço, da dor e elevando a minha
alma às profundezas inabaláveis de um mar. Paradoxal,
sim, deveras.
Nesse
mar, levo comigo a minha lanterna mágica, como aqueles antigos retroprojetores que
expõem figuras e escritas na parede. Levo comigo a minha pedra de Bolonha que, após
ter sido exposta ao sol, absorve os seus raios e reluz por algum tempo. Ocorre
comigo a mesma coisa quando ouço música: a dor fenece, o mau humor é dizimado e
a vida é coisa maravilhosa.
A
música é a “criatura” mais benfazeja da Terra: sempre solícita e, por onde
toca, toca a felicidade ou a tristeza – depende da razão da música. Sim, o
quanto eu me adoro, desde que a música me toque. O quanto o outro me adora e eu
o adoro, desde que a música nos toque.
Estimo
ser verossímil o que dizem a respeito do poder mágico da música medieval e
barroca, bem como descreveu Samuel ao relatar que, quando Davi tocava sua harpa,
os maus espíritos abandonavam o rei Saul – é o poder curador da música, é a
pedra de Bolonha a energizar a alma com sua benevolente graça musical.
Livrai-me,
oh, Deus!, dessas más vontades amarradas ao pescoço, porque lá fora é manhã de
sol e aqui dentro, enquanto ouço essa ópera, vivo instantes tão felizes como
aqueles reservados aos Seus eleitos. Aconteça o que acontecer, jamais direi que
não experimentei a felicidade. A felicidade mais pura da vida – o tormento
maravilhoso da música. Enquanto ela toca, eu me sinto... Como poderia ter
imaginado, quando elegi a música para sostenir as minhas aspirações literárias,
que ela estava tão perto do Céu?
É a
música, para mim, o talento mais útil e belo sobre a Terra. Desde este momento,
toda a natureza em si e até mesmo a velha ponte de madeira podem seguir
tranquilos a sua jornada, que para mim já não há mais mundos: o universo
inteiro desapareceu e eu não sou mais humana... Sou órbita ao redor do som.
(publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista -Goiânia, Goiás em 30 de julho 2012)
0 comentários:
Postar um comentário
Grata pelo seu comentário. Volte sempre.