Perto, muito perto, onde toda tristeza do mundo se esconde há um vilarejo em ruínas. Eu não diria para os moradores daquele lugar que não foi bem assim que vislumbrei a cidade: em ruínas.
Fiz esforços para esquecer o tal lugarejo, mas ele não sai da minha cabeça. Lembro-me bem, como se tivesse acabado de chegar ali, do toque do sino anunciando que uma fornada de pão francês acabara de sair na Padaria Central. Nem precisava, pois o cheiro de pão quentinho invadira a cidade perfumando-a com seu levedo farináceo, anunciando gostosamente a sua chegada.
Lembro-me que acabara de chover. O asfalto estava luminoso e as diminutas cachoeiras urbanas levavam o lixo da vila esgoto adentro e rio afora, numa simetria lenta, como se as coisas que pessoa alguma quis fosse tudo que realmente desejasse ficar ali...
No vilarejo em ruínas sempre chove. Até quando há sol ensoalha chuva. Quanto ao ‘sempre chove’, não posso precisar, mas naquele dia, eu vi o sol chover...
Depois de tocar para anunciar o pão o sino anunciou a hora da missa e os fiéis rumaram para a igreja calçados com botas de borracha à "chaplinescar" com lerdeza seus guarda-chuvas: confirmação de “sempre chove”?
Não sei. É estranho!
Curiosa, fui a Catedral. Uma réplica barroca da igreja parisiense do Val-de-Grâce, com todos os elementos clássicos e renascentistas possíveis em seus retângulos harmoniosos. Pude, e isso era inevitável, contemplar na majestosa estrutura a libertação da antítese entre espaço interior e exterior. O que significou a mim naquele instante a percepção de um estado psicológico da atitude criativa liberta de preconceitos intelectuais e formais; separação da realidade artística do maneirismo.
Pensei: "Paradoxal". Afinal as pessoas daquele lugar eram substancialmente maneiristas.
Os ritos da Igreja prosseguiram por meio de palavras mediadoras entre a gente do vilarejo e Deus. O padre rezava o fluir dos olhos chuvosos da vila. Não era dois de novembro, mas os fiéis estavam de luto. Seria porque sempre chove?
O homem sentado na calçada mendigava o salário dos "justos". E ele não usava botas de borracha e tampouco possuía um guarda-chuva. Mas gritava:
- “O homem é um animal com instintos primários de sobrevivência. Por isso, seus engenhos desenvolvem-se primeiro e a alma depois, porque o progresso da ciência está mais adiantado que seu comportamento ético.”
Eu ri. O homem não precisava de guarda-chuva para “chaplinescar”.
Nem de longe, e isso eu jamais poderia deixar de falar, que as ruínas da vila não estavam em suas casas e nem na arquitetura da cidade, pelo contrário... Perto, muito perto de onde toda tristeza do mundo se esconde, existe um vilarejo cuja estrutura urbanística é a mais perfeita que já vi em toda minha vida.
- Está sem as botas e o guarda-chuva. Quando a tempestade chegar, a senhora ficará toda encharcada. Disse-me o fraseador de Chaplin.
- Eu me encharcar? Não, não... eu não sou do vilarejo.
Respondi ao poeta das calçadas e parti sem olhar para trás.
(publicada no Diário da Manhã - DM-Revista - Goiânia - Goiás - em 18/10/2010)
segunda-feira, 18 de outubro de 2010
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Clara,
ResponderExcluirEstou encantado com seu trabalho, parabéns.
Tomei e tomarei a liberdade, vez em quando, de levá-la para o Abaribó. Espero não se oponha.
Te abraço.
Teço modestas considerações acerca do mesmo. Longe de mim querer fazer um arremedo de crítica literária, são meramente opiniões de um leitor “paisano”.
ResponderExcluirGostei do início “Perto, muito perto”, numa resposta ao clichê do “longe, muito longe”, tão comum e cansativo dos contos de fadas. A descrição minuciosa do cenário faz com que a gente “veja” o vilarejo com os olhos de nossa mente, e chegamos a acreditar – mercê do pacto de leitura – que tal lugar efetivamente existe. Um lugar de antíteses, expressas aqui e ali, como na expressão “esgoto adentro e rio afora”.
Interessante as palavras derivadas do nome do criador do imortal Carlitos. O adjetivo “chaplinesco” e o verbo “chaplinescar” trazem à memória o andar bamboleante do inesquecível personagem, e eu cheguei mesmo a “vê-lo” na inglória luta com a sua sopa de sapato.
Singular vilarejo, que se permite o luxo de ter uma réplica da igreja parisiense de Val-de-Grâce; imagine-se a quietude e a tranquilidade desse lugarejo, um verdadeiro Vale da Graça, que só não é perfeito, apesar da ruína, porque ali “sempre chove”.
Trata-se de um conto em que, mais importante que a ação, é fundamental a descrição do panorama e a construção psicológica dos personagens. O pedinte que “não usava botas de borracha e tampouco possuía um guarda-chuva” é um primor de criatividade, sentado na calçada a filosofar com a propriedade de um Rousseau. Seu vocabulário, erudito e rico, contrasta com a ideia que se tem de um mendigo interiorano. Mas, a bem da verdade, aqui mesmo em São Luís de Montes Belos há um sujeito maltrapilho que vaga pelas ruas e discorre com propriedade acerca de assuntos complexos, sendo também, aparentemente, um expert em Química, sabendo de cor a tabela periódica (!). Vida imitando a arte, e vice-versa.
O fecho do conto, o diálogo à primeira vista pleno de nonsense, encerra de forma incisiva o texto, deixando o leitor comum (os não iniciados, não como nós, que lemos muito e chegamos a um patamar mais elevado) a se perguntar “que parte eu não entendi?” ou mesmo “há algo mais para se entender aqui?”.
Enfim, gostei do texto, sempre que quiser enviar, sinta-se à vontade.
Um grande abraço de seu leitor Celso Moraes Faria