Quando o sol dissipar a neblina da serra, eu vou trazê-lo de volta. Ah, eu vou, sim! Se ele pensa que eu vou ficar aqui, com essa cara de navio ancorado e com essa boca travada na horizontal, como se me faltasse os incisivos... ele está redondamente certo.
Eu tenho pavor ao frio, ao tempo fechado e a névoa. E, tão somente por essa razão, ficarei aqui de pé em frente à janela. Mas, logo que o sol descobrir o idílico monte, eu vou trazer de volta aquele “malagradecido”, e se ele tentar fugir dou-lhe uns sopapos verbais... e, depois trago-o de volta para casa. Trago mesmo!
Através do vidro embaçado da janela, vejo uma juriti... a juritir enquanto caminha flutuante sobre folhas mortas. Penso naquele infeliz atravessando a serra úmida... talvez, com frio, talvez, com fome ou... talvez, esteja morto.
Morto? Bem feito para ele. Quem mandou me deixar aqui? Quem mandou ir embora? Tomara que seja devorado por aves de rapina. Posso vê-lo: pescoço quebrado, membros separados do corpo e vísceras expostas... Meu Deus! É mais do que eu posso suportar. Cretino, vai me fazer sair de casa com esse tempo?
Penteio os cabelos, passo um batom róseo, coloco aqueles brincos dourados de pêndulo que ele adora, suspendo os peitos num sutiã com aro e visto a jaqueta jeans que usei no dia em que nos conhecemos, depois calço as botas que ele detestava ver no meio da casa... agora que lembrei disso, acho graça e penso que eu deixava as botas jogadas pela casa só para vê-lo irritado.
E se ele não estiver sofrendo coisa alguma? E se agora, nesse justo momento em que eu me dilacero, ele estiver nos braços de outra? E a outra? Será melhor do que eu? Será que ela sabe qual é a sua comida favorita? As músicas que ele gosta de ouvir e as coisas que o deixa triste? Será que ela lê poesias de Quintana e Drummond para ele? – Duvido, duvido, duvido.
Ingrato! Depois de tudo que eu fiz por ele... Além de todo meu amor, carinho e dedicação, fiz aqui no canto direito da sala uma parede cheia de espelhos, porque ele gostava de cantar se olhando no espelho. Acho que se sentia o próprio Chantecler em: “Chantecler, o Rei do Rock.”
Tudo bem, rei do rock, lá vou eu, lhe trazer de volta. E, ai de você se fugir de mim... ai de mim! Por Deus, não fuja, pois é por amor que agora enfrento o frio, a neblina e deixo a pobre juriti a juritir solitária em sua vã cantoria ao voar sobre a relva...
Logo, logo eu chego, seu “malagradecido” e, ai de você... e... ai de mim...
...mas vejam só, se não é aquele infeliz bem ali no vão das rochas todo assanhado com aquela maritaca toda emplumada?
- Papagaio filho da mãe!
(Publicado no Diário da Manhã- Goiânia - Goiás em 29/11/2010)
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