Ele chegou no trem das dezoito horas e seis minutos. Ele chegou no trem das dezoito e bagunçou a minha cabeça. O trem é uma invenção fantástica, sem dúvida. Pensei, uma invenção para portar o lugar dantes ocupado por bestas-feras, mas não importa o quanto as máquinas evoluam serão sempre conduzidas por bestas-feras.
O comboio que trazia o homem vinha de um interior longínquo apareceu pouco depois do relógio marcar dezoito horas. Chegou com fragor, abalando as minhas estruturas, ameaçando arrebatar-me feito um tufão e conduzir-me por entre fabulas cosmopolitas e, assim, transformaria a minha vida num conto de fadas... O comboio? Não, o homem do interior.
Trilaram mais dois apitos e no posto do agulheiro um sinal carmesim substitui o branco. O maquinista apitou mais um sino prolongado, abriu o regulador que desligara a máquina e ela deslizou em freios engolfando a inércia na estação. Depois disso, ei-lo vindo pela passagem de nível postando-se à cancela aberta... Meu Deus, isso foi há tanto tempo! Mas, não faz tempo algum.
Às vezes, eu pensava em como ele seria. Às vezes, ele pensava em como eu seria e, às vezes, a gente pensava como seríamos juntos e, sem saber, nos relacionávamos mutuamente. A gente não se conhecia mas havia amor e eu soube quem ele é no momento que olhei para ele. Ele também soube quem eu sou quando seus olhos acostumados com a imaginação de mim, tão somente me vislumbraram.
O homem do interior vinha em minha direção e eu jamais precisaria sua personalidade. Será ele um daqueles modelos de corpo atlético e faces cheirosas? Tateei-o em meus pensamentos, cada centímetro sem pestanejar. Será ele um músico em ascensão? Estalei os dedos almejando o dedilhar de um belo instrumento.
Será ele um poeta? Molhei a ponta do dedo na língua com vontade de folhear o próprio autor. Será ele, por Deus, carente, tímido ou debochado e sedutor? Inteligente e atrapalhado ou presunçoso e egoísta? Ou ainda, será que ele escolheu viver para ser apenas o homem do interior. Assim, em sua razão, de ser tão somente o homem do interior?
Que tolo é esse homem que veio do interior, para invadir a minha vida pensando que sou uma perfeição. E, imaginar que já estamos juntos há tanto tempoe que tudo que vivenciamos esses anos todos foi quase surreal. Mas tudo bem, pois o real é apenas mito.
Ah! Eu não sabia que o homem do interior, ali na estação, ao desembarcar com toda aquela bagagem pesada transformaria a minha existência de simétricas cores numa musicalidade agogô e ainda assim, acreditar-me-ia ser uma santidade.
A culpa não é sua, homem. A culpa é de Deus que deu-me esse rosto confiável sabendo de antemão que eu não lhe faria justiça. Culpa de Deus que me deu beleza sabendo-me tantas feiuras; que deu-me inteligência sabendo que eu faria tolices aos montes.
A culpa é de Deus que me deu um corpo vazio. Tão vazio que precisa de um homem para habitar em seu interior e esse homem, por não saber direito quem é, se faz de santo. Mas, eu não sou santo, homem! Se santo eu fosse faria um milagre: o afastaria de mim para que nessa romântica e insuportável simbiose, eu pudesse deixar de ser, como tantos, areias de deserto a esperar tempestades: sedento corpo... sedento de espírito... Por fim, eu, sem o homem do interior seria, tão somente e sem hipocrisia, a besta-fera a carregar pálios.
(Crônica publicada no Diário da Manhã - Goiânia - Goiás - DM - Revista dia 10/01/2011)
(Fonte da imagens: Marketing Sensorial)
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