segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Coração de Minhoca

Deixo, por onde passo, fragmentos de mim e absorvo outro pedaço aqui, um traço ali e um bocado acolá. Minha vida outrora – colcha de retalhos incolores – transmuta-se num quebra-cabeça cosmopolita e insensível a olhos outros.  Mas não aos meus.

Vislumbro no espelho, ainda, um pouco do que eu era: colcha de retalhos – todos da mesma cor sem cor. Pedaço por pedaço costurados um a um, com a linha do tempo, por uma agulha grossa e torta. Acabo por não resolver, nunca, onde colocar meus trapos. Na dúvida, melhor largá-los à mercê e sair por aí a revirar latas antropológicas mundo adentro e saberes afora.

Distingo de soslaio essa transmutação intrínseca: pedaços históricos de tantos lugares,tantas gentes e tantas coisas, aqui dentro desse meu peito a sacudir-me pela esquerda e concluo que, semelhante a uma minhoca, eu também queria ter dez corações. Por Cristo! Para que uma minhoca precisa de tantos corações? Oh, céus. Para que, então, precisaria eu também?

Estou com essas “minhocas” na cabeça agora. Estaria minha cabeça nesse instante toda coração? Minha nossa! Dez corações jacentes em um corpo... e a minhoca segue sua vida oclusa a serpentear a bissexualidade, sendo macho e fêmea sem pestanejar... Ora, e teria a minhoca, pestanas? Certamente não. Deve ser por isso sua indiferente mania de “coitoar” de ponta-cabeça e de cabeça a ponta... Achei graça ao desenhar essa imagem com as minhocas que estão cavando túneis na minha mente: segredos da literatura.
 
Uma pausa para iscar a minhoca na rede de minha sintaxe a fim de entender o porquê de seus muitos corações.  É sabido que ela tem o corpo dividido em anéis, cinco pares de corações, cérebro, cavidade bucal, uma pequena tromba que funciona como um perfurador, faringe, esôfago, três pares de glândulas calcíferas, papo, moela, intestino, próstata, testículos, ovários e receptáculos seminais... Não possui visão nem audição, mas é sensível ao tato. Vive em média dezesseis anos, sua fertilidade sexual permanece até o fim da vida e seus descendentes podem chegar cento e quarenta ao ano... Ufa!

Bem, o parágrafo acima não estava na minha cabeça, é pedaço de saber colhido do “Animal Planet” para fazer uma coloração mucosa nos retalhos do texto.

Fascinou-me, deveras, o tema “minhoca”. O nome é jocoso, mas a vida dela é repleta de poesia traduzida pelo ‘sentir’ todas as coisas em torno de si. O fato de não ter visão e nem audição – apenas sentir – é a fascinante armadilha de uma felicidade que enfastia e atrai ao mesmo tempo e da qual não se pode fugir; é uma forma de sobreviver sem naufragar no alagado de mucilagem que flui das entranhas na hora em que é preciso rastejar sob as próprias fezes.

Sentir, sentir, sentir...! Sentir a poética que vem da terra – lugar onde se habita – lar. Sentir-se homem e/ou mulher na construção de seus canais e ‘enxergar’ que, apesar da aparência externa, se é substancialmente um verme igual a todas as minhocas.

Tal dialética fez-me descobrir o que hoje sou – colcha de retalhos - virados do avesso e tingidos com as cores das terras que cavei com as próprias mãos.
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Um comentário:

  1. O blog é lindo: textos lindos e deliciosos... Ah, a autora, também é uma graça. Adoro tudo aqui! Sorella Luna

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