segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Um mar inteiro para Gala e, para mim, um ribeirão?

Tá sentindo esse cheiro de terra molhada? Sou eu. Sou feito chuva mansa que não levanta poeira alguma. Sou água de riacho raso, onde se pode contar pedrinhas. Flutuo sobre o solo sem jamais tocá-lo completamente, porque levo comigo apenas os sonhos. Sou a ressonância humana da sua janela, Dalí.

Sou  a parte fraca de seu ego inflado, sou o tom metálico e cinza das nuances de seus bigodes. Sou o caminho pedonal que lhe chama à realidade. Mas a realidade não lhe representa coisa alguma... E nem a mim, oh, céus! Através de seu pincel honestamente possível, você me mostrou que não há nada mais surreal do que a realidade... e eu acreditei, mas só por algum tempo. Pois o que para você é fato, para mim não passa de especulação artística.

Ei, Salvador, o que foi que lhe aconteceu? Será que não se lembra mais de nós dois? Nós nadávamos no riacho e você me desenhava com carvão. Depois papai fazia festa de família, só para mostrar a todos os seus desenhos... Você se lembra? Não, você se esqueceu. Já não se lembra mais de mim? Eu era a menina dos seus olhos... Sua musa singular... Não se lembra?  Que inferno! Valha-me Deus!

Lorcas e Gala; Gala e Descartes; Picasso e Gala; Gala e Gerrit; Rinocerontes e Gala; Gala e Freud; Diego Velázquez e Gala; Gala e os elefantes... Um mar inteiro para Gala apreciar... E para mim? Um ribeirão.  Gala, Gala, Gala... Maldito seja o ventre  que gerou a Gala.
Gala. Com qual interesse ela lhe suporta? Financeiro, suponho. Sim, pois não é fácil conviver com  todas as suas fobias aos insetos...  Oh, o grande Dalí não suporta gafanhotos! Além disso, você é um franquista amante do dinheiro...E também é um aparelho digestivo... Sim, você é um aparelho digestivo... Se ao menos você viesse me ver por um único dia apenas... Eu poderia posar para você... Na varanda ou, como antes, numa janela.

Quem sabe, no dia da inauguração do museu que fizeram para você aqui em Figueres. Uma sepultura: um incomparável centro de cretinização. Quadros com títulos errados, visitantes em busca de explicações, inquiridores que nunca investigam coisa alguma, psicanalistas que examinarão se você é mais louco do que qualquer outro louco que já existiu.

Mas como você mesmo diz, a cretinização é o alimento generoso dos idiotas. No entanto, meu irmão, esse tipo de idiota não é daqueles que lhe causam paixão: idiotas reais, o gelatinoso, o pleno revoltante, completamente retardado, de lodo e saliva. São idiotas por nunca se fartarem da ganância de Dalí... Será que...?

Será que Gala sabe que você disse que se ela morrer você gostaria de comê-la? Que, morta, ela se encolheria tal qual uma azeitona e você a devoraria, porque acha que o canibalismo é a maior manifestação da ternura...? Será que ela sabe disso? Fique certo de que eu escreverei um livro para contar isso a ela. Aguarde e verá nas prateleiras: "Dalí visto por sua irmã"! Nesse dia, enfim, levantarei poeira.



(Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 17 de fevereiro de 2013).

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