Em memória de Arthur Miranda
26/06/1993 – 17/08/2013
Tia Bárbara tinha o hábito de nos obrigar a ficar de joelhos
em frente à TV todos os dias, durante a apresentação da Hora do Ângelus.
Enquanto José Divino, com sua voz afável, narrava tão belas palavras de Jávier
Godinho, a gente pensava mesmo era nos tacos de “Bete” que tinham ficado
jogados na rua à espera do próximo lance. Da tia Bárbara, além de seu jeito
corcunda de caminhar, recordo somente isso.
Mas da Hora do Ângelus jamais me esquecerei... É que outra
tarde, quando o sol se despedia dos pássaros, eu estava deitada na rede no meu
Vale das Quimeras... fechei os olhos para ouvir o chiado bonito daquela
despedida inevitável, e o José Divino – que beleza! –, no radinho de pilha do
caseiro, louvava a Deus com ternura. Alguns minutos foram suficientes para que
eu caísse no sono. Sonhei com o meu filho Arthur, ainda pequeno.
Tinha no olhar as travessuras saltitantes e chamou-me – Vem!?
– e eu, num salto da rede, fui brincar com ele. Jogamos bola sobre a grama
macia e nela caíamos de propósito só para inventar gols espetaculares. Como se
mágica fosse, estávamos em outro lugar: a água de um riachinho escorria debaixo
de nossos pés e, quando olhei para ele, oh, céus!, como estava lindo, vestido
com aquele sorriso debochado e seu olhar dotado de sofisma pueril.
Disse-me: Vem!? – e eu fui correr com ele naquelas águas rasas e obedientes.
Não havia pausa para lavar o rosto e tampouco provar da
água – ele tinha pressa. Chamava – Vem!? – e eu não titubeava um segundo,
seguia-o sem questionamentos para não perder a bondade de sua presença. Num
repente, vi o meu reflexo na água e eu estava senil e frouxa. Uns 80 anos
despencaram em minha face e quase chorei ... Quase. Não fosse a euforia dele – Vem,
vem, vem...!?
Eu não tinha tempo para chorar, então esqueci a velhice e
fui com ele, agora sobre gramíneas risonhas, com suas flores diminutas em
formato de brancas estrelas. Borboletas multicoloridas voejavam sobre nossas
cabeças e eu me sentia tão viva, ali ao lado dele, como se fôssemos duas
crianças descobrindo as belezas da Terra.
Em outro lugar, ele então usava aquela sua camiseta azul
celeste e aparentava uns 20 anos. Bonito, bonito, bonito... Com seus cabelos
lisos caídos sobre a sobrancelha semicerrada: moldura perfeita para guarnecer
radiante sorriso. Chamou-me mais uma vez
– Vem!? – e eu – sem delongas – saltei para os seus braços e beijei sua face
morna. Ele acariciou os meus cabelos e perguntou-me se eu estava cansada. Num
sorriso choroso, disse-lhe que jamais ficaria cansada ao seu lado.
Segurou a minha mão e disse: Vamos. Fomos correr, correr,
correr... Corríamos e ríamos de nós mesmos quando nos faltava o fôlego. Ele,
tal qual pássaro livre, vivenciava a ternura da vida sem quaisquer lembranças
de seu tormento na terra. Nenhuma voz inumana perturbava sua mente e tampouco
as terríveis dores de cabeça. Liberto, sorria. E quão glorioso era para mim
vê-lo assim, liberto das correntes da loucura.
Liberto, meu Deus, liberto!
Depois, e enfim lânguidos, deitamos no chão para
apreciarmos o pôr-do-sol. Era possível ouvir ao longe seriemas com seus gritos
estridentes por causa de nossa presença.
Eu estava feliz. Uma felicidade que a mente o coração
humano não sabem suportar. Por isso, chorei. Chorei, chorei, chorei... e,
quanto mais chorava, mais vontade eu tinha de chorar e de sorrir para ele, que me
olhava com ternura... E foi assim que um suave sorriso escapuliu do canto de
sua boca e ele segurou a minha mão e disse-me: Mãe, não chora! A espera
terminou. Vem comigo!
Olhei para minha mão,
que segurava a dele, e achei-a velha demais. Preocupação tola para alguém que
experimentava a benevolência de ouvir tão esperado chamado. Então, com aquele
sorriso que a boca humana não sabe conter, eu lhe estendi a outra mão para
que ele me ajudasse a levantar... E foi no instante em que ele arrebatava o meu
corpo que eu acordei.
Maldita hora 18, que
sepultou o meu filho num domingo chuvoso de um agosto eterno.
Clara Dawn
(Inspirado em O guardador de rebanhos –
VII, de Fernando Pessoa)
Uma mãe, seu filho, um fato inesperado e a saudade.
ResponderExcluirO momento dos sorrisos virão e serão os mais belos sorrisos, serão os brilhos mais intensos nos olhos e serão os "Vem's" mais ternos que alguém pode ouvir.