sexta-feira, 26 de junho de 2015

Felizes 20 anos para sempre, meu filho - A hora 18

Arthur Miranda no Lago Paranoá - DF - Aquarela de Ederson Amorim.

Em memória de Arthur Miranda
26/06/1993 – 17/08/2013

Tia Bárbara tinha o hábito de nos obrigar a ficar de joelhos em frente à TV todos os dias, durante a apresentação da Hora do Ângelus. Enquanto José Divino, com sua voz afável, narrava tão belas palavras de Jávier Godinho, a gente pensava mesmo era nos tacos de “Bete” que tinham ficado jogados na rua à espera do próximo lance. Da tia Bárbara, além de seu jeito corcunda de caminhar, recordo somente isso.

Mas da Hora do Ângelus jamais me esquecerei... É que outra tarde, quando o sol se despedia dos pássaros, eu estava deitada na rede no meu Vale das Quimeras... fechei os olhos para ouvir o chiado bonito daquela despedida inevitável, e o José Divino – que beleza! –, no radinho de pilha do caseiro, louvava a Deus com ternura. Alguns minutos foram suficientes para que eu caísse no sono. Sonhei com o meu filho Arthur, ainda pequeno.

Tinha no olhar as travessuras saltitantes e chamou-me – Vem!? – e eu, num salto da rede, fui brincar com ele. Jogamos bola sobre a grama macia e nela caíamos de propósito só para inventar gols espetaculares. Como se mágica fosse, estávamos em outro lugar: a água de um riachinho escorria debaixo de nossos pés e, quando olhei para ele, oh, céus!, como estava lindo, vestido com aquele sorriso debochado e seu olhar dotado de sofisma pueril. Disse-me: Vem!? – e eu fui correr com ele naquelas águas rasas e obedientes.

Não havia pausa para lavar o rosto e tampouco provar da água – ele tinha pressa. Chamava – Vem!? – e eu não titubeava um segundo, seguia-o sem questionamentos para não perder a bondade de sua presença. Num repente, vi o meu reflexo na água e eu estava senil e frouxa. Uns 80 anos despencaram em minha face e quase chorei ... Quase. Não fosse a euforia dele – Vem, vem, vem...!?
Eu não tinha tempo para chorar, então esqueci a velhice e fui com ele, agora sobre gramíneas risonhas, com suas flores diminutas em formato de brancas estrelas. Borboletas multicoloridas voejavam sobre nossas cabeças e eu me sentia tão viva, ali ao lado dele, como se fôssemos duas crianças descobrindo as belezas da Terra.

Em outro lugar, ele então usava aquela sua camiseta azul celeste e aparentava uns 20 anos. Bonito, bonito, bonito... Com seus cabelos lisos caídos sobre a sobrancelha semicerrada: moldura perfeita para guarnecer radiante sorriso.  Chamou-me mais uma vez – Vem!? – e eu – sem delongas – saltei para os seus braços e beijei sua face morna. Ele acariciou os meus cabelos e perguntou-me se eu estava cansada. Num sorriso choroso, disse-lhe que jamais ficaria cansada ao seu lado.

Segurou a minha mão e disse: Vamos. Fomos correr, correr, correr... Corríamos e ríamos de nós mesmos quando nos faltava o fôlego. Ele, tal qual pássaro livre, vivenciava a ternura da vida sem quaisquer lembranças de seu tormento na terra. Nenhuma voz inumana perturbava sua mente e tampouco as terríveis dores de cabeça. Liberto, sorria. E quão glorioso era para mim vê-lo assim, liberto das correntes da loucura.  Liberto, meu Deus, liberto!

Depois, e enfim lânguidos, deitamos no chão para apreciarmos o pôr-do-sol. Era possível ouvir ao longe seriemas com seus gritos estridentes por causa de nossa presença.

Eu estava feliz. Uma felicidade que a mente o coração humano não sabem suportar. Por isso, chorei. Chorei, chorei, chorei... e, quanto mais chorava, mais vontade eu tinha de chorar e de sorrir para ele, que me olhava com ternura... E foi assim que um suave sorriso escapuliu do canto de sua boca e ele segurou a minha mão e disse-me: Mãe, não chora! A espera terminou. Vem comigo!  

 Olhei para minha mão, que segurava a dele, e achei-a velha demais. Preocupação tola para alguém que experimentava a benevolência de ouvir tão esperado chamado. Então, com aquele sorriso que a boca humana não sabe conter, eu lhe estendi a outra mão para que ele me ajudasse a levantar... E foi no instante em que ele arrebatava o meu corpo que eu acordei.

Maldita hora 18, que sepultou o meu filho num domingo chuvoso de um agosto eterno.

Clara Dawn

(Inspirado em O guardador de rebanhos – VII, de Fernando Pessoa)
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Um comentário:

  1. Uma mãe, seu filho, um fato inesperado e a saudade.
    O momento dos sorrisos virão e serão os mais belos sorrisos, serão os brilhos mais intensos nos olhos e serão os "Vem's" mais ternos que alguém pode ouvir.

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