Enquanto a cotovia, no afã de seu ninho terreno, inquietava-se sob os raios vermelhos do remanescente sol da décima oitava hora, eu aspirava o cheiro lavado que vinhado ocidente e aquele perfume longínquo invadiu as minhas lembranças por alguns instantes. Ah, aquele perfume! Por Cristo, eu jamais o esqueceria. Jamais!
Do cheiro eu me lembro muito bem, mas tive que buscar nos recônditos da memória os pedaços das imagens trazidas pela fragrância do passado. De um passado jacente nas perguntas tolas que se faz à lua; nas canções caóticas junto às margens de um rio pequeno; na conspiração da colheita delinquente do amor unilateral; na dor branca da parede de onde restou somente o prego; no zig-zag proposital da face rasgada na foto; no repartido teimoso de um livro a repetir sempre o mesmo poema; na tristeza azul do marcador de páginas - o marcador de páginas – uma flor miosótis integrante de um arranjo bonito – ela tem o cheiro do passado...
Um carrossel de imagens se formou em minha mente – imagens sombrias e instáveis – girando,girando, girando, até a exaustão. Deixei-me ser levada pelo entorpecimento e um faro transeunte vagou nas minhas vias respiratórias fazendo o ar escapulir involuntariamente pelas narinas, e daí o meu coração iniciou um ritmo de acriançados pulos. Quanto mais aspirava aquele cheiro, mais saudade eu sentia de um tempo onde eu fora feliz. Uma felicidade tamanha que em tempo posterior algum eu voltei a sentir. Fechei os olhos – aspirei o ar profundamente – sim,aquele era o perfume da felicidade.
Mas um cheiro nunca está só. Ele traz consigo tantos “de onde vem e para onde vai”.Tantos que nem sei camuflá-los nessa minha face insípida. Traz consigo os lugares por onde esteve, a música que ouviu e foi tão especial naquele instante; traz o riso ou a lágrima... Não importa – o cheiro do momento – é inesquecível.
Abri os olhos e me despedi do sol, que a essa hora flertava comigo apenas de soslaio. Era tarde demais para um beijo febril e regalar-me em seus braços –nem pensar! Ele se foi e deixou a cotovia canora orquestrando o pitoresco cenário do inicio de uma noite sem freios. Uma noite que jamais acordou desde então. Uma noite que, embora tivesse lá seus encantos, nunca seria manhã de sol. Uma noite que, apesar da inestimável presença das estrelas, nunca, nunca mesmo, resplandeceria a beleza díspar de um entardecer pré-outonal.
O cheiro da manhã é a primavera da infância, o odor da tarde é pré-outonal – avida prestes a encarar a longa noite onde as cãs atingem a sobrancelha e o perfume da existência é acre - igual ao cheiro de fruta madura demais.
Masa fragrância que senti naquele instante não era acre. Era o perfume da felicidade. De uma felicidade que deixei para trás e nem mesmo sei o porquê. Talvez por conceber-me pronta. Talvez por considerar que o que passou não voltará...Talvez!
Pensando nisso, me aborreço. Oh, céus! Justamente agora? Então será assim? No momento em que eu me considero uma pessoa madura o suficiente para tomar minhas próprias decisões, surge, trazido por um vento tosco, esse tal perfume da felicidade. Da felicidade indelével que ficou pra trás e que seria humanamente ridículo vivenciá-la outra vez.
Talvez não seja tão ridículo assim. Seria imprudência minha procurar de onde vem o cheiro das minhas lembranças? Seria infantil rolar, tal qual um cão, no odor da minha felicidade? Ridículo, imprudência ou imaturidade... Não importa, eu hei de me lambuzar, pois a felicidade tem o cheiro de araticum, gosto de gabiroba, as cores dos cajuzinhos e a beleza de uma caliandra do cerrado. A felicidade tem dez anos incompletos, joelhos esfolados, toca uma violinha sentada nos galhos do pequizeiro, tem a boca cor mama-cadela e o sorriso verde jatobá.
O exercício da sinestesia neste texto claradawniano nos faz perguntar quais seriam o cheiro e a cor, a textura e o sabor da felicidade, e, por conseguinte, de outras abstrações. Que cheiro teria o ódio? Certamente, nada agradável. O carinho, teria que gosto? Com certeza, palatável. E por aí seguiríamos, uma pergunta puxando outra, num infinito brotar de origens. E é para isso que uma crônica serve: para suscitar pensamentos, para provocar, no bom sentido do termo. Fui provocado por mais este texto de Clara. Sou grato pelo prazer de tê-lo lido.
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