segunda-feira, 25 de março de 2013

O Cravo Bem Temperado


Sinto-me enjoada. Tenho estado tão grávida de mim nos últimos dias que a ânsia de vômito é latente. Se eu pudesse, se enojar o leitor não fosse, vomitar-me-ia agora mesmo.  É que eu tenho a mania irritante de ser feliz e de viver cantando – ainda que para dentro – às vezes, canto para fora – baixinho, mas prefiro berrar para dentro mesmo... Sou, assim, panglossiana de espírito: para mim “tudo” é perfeito do jeito que é – ‘os fins justificam os meios’ – e somente por isso vivencio o meio na certeza de um fim justificado.  

Sou tão grávida de mim que transbordo e oh, céus!, não há santo que aguente quando eu começo a dissertar sobre isso. Pobre leitor: que dó – que dó – que dó... Mas o leitor não tem pena de mim, não quer saber se agora mesmo, enquanto leio o que eu escrevi, tenho piedade mesmo é desse ‘dó’ que tamborilou o texto como se uma bola fosse, e quicando em ritmo alucinado enfrenta a quentura do asfalto na hora quinze e depois estaciona aqui – no embaraçado destas linhas, pensando que encontrou a escala perfeita. Que dó!   

Mas o leitor não se importa comigo. O leitor quer devorar o texto com ganas de grande fome e ai de mim se o cardápio não estiver apetitoso... Não vou apetecer o texto, não vou simplificar  esse ‘dó’, não vou escrever um discurso compreensivo, não vou prosear liricamente. Não vou –  hoje estou enjoada – que dó – que dó – que dó...

Jactância. Culpa minha. Maldita palavra. Por que apareceu justo agora? Por que precisa afundar o meu ‘dó’ só para dizer que o meu barquinho acaba de ficar atolado na empáfia? Eu não me importo, já  estive atolada outras vezes e, além do mais, estou eu, aqui, afundada com esse ‘dó’. Ah, eu  tenho tanto dó!, tenho dó – tenha dó... tenhamos dó...   

Por Cristo, mas que diabo de ‘dó’ é esse que se amoleca dentro da minha cabeça? Já disse, não tenho talento para as grandezas – jamais farei desse dó um solfejo. Ainda que um prelúdio de Bach em seu ‘cravo bem temperado’ sopre lentamente aos meus ouvidos, causando-me uma sensação vertiginosa e terna... eu não seria capaz, Sebastian. Jamais seria.

Estou enamorada de mim agora. O enjoo passou. Porque quando ouço Bach, liberto-me; porque sinto-me em ebulição por ter uma orquestra dentro da cabeça e porque nessa orquestra eu posso identificar facilmente os sons das coisas pelas quais a vida vale a pena; porque esse ‘dó’ derramado no texto foi a melhor coisa que poderia me acontecer neste instante: paro de escrever para ouvi-lo. Não faço coisa alguma enquanto ouço esse dó sustenido – gosto de olhar para ele – de enxergá-lo e, enxergando-o, posso retribuir-lhe o toque, tocando-o com  infantil encantamento.

Não sei coisa alguma sobre música. Não quero saber. É transcendental para mim, é epifania pura, é nirvana... Depois de ouvir Bach não há o que me contamine; não há peso que não seja pena; não há pena capaz de condenar-me; não há condenação que me subjugue; não há jugo que eu não deboche; não há dor que eu não escarneça; eu rio e caçoo de minhas dores, e se não me contenho faço um samba de antíteses – a minha alegria é broto de tristeza – ai, que dó: que dó, que dó, que dó!

Não importa: o fim acabou de justificar o meio e nada mais importa – nem o início, nem o meio e tampouco o fim. Porque quando ouço Bach, nada mais importa –  quando ouço Bach, fico pronta para a morte.

(Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 25 de março de 2013).
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