quinta-feira, 23 de maio de 2013

Automorte e vida cafetina



Quando penso que eu me permiti estar enxertada naqueles textos que levam a sua assinatura, sinto uma agonia enfadonha.  Quando penso que amanhã você terá asco destas coisas que agora assina, tenho pena de você.  Você é senhora, amante e serva das palavras que cativa. Pelo menos é o que você crê, e eu não discuto.  No entanto, o  meu  espírito  se ouriça quando um escritor, poeta ou não, usa de aspereza verbal, pois o meu anseio está na beleza gráfica e isso são poucos que sabem usar.   E quando me agridem com um emaranhado de expressões parcas e virulentas, calafrios serpenteiam a minha branca pena e febril  estremeço. A ranhura é tamanha que, se levar o autor comigo não fosse, eu cometeria a ‘automorte’.

Automorte, sim, porque não gosto de me sujar com o suicídio. Também não gosto quando cafetinam o texto com calões. Um bom texto jamais se masturba – ele pratica autofornicação – e, pelo menos, nesse instante – ele se adora. Porque, se um autor não consegue fazer com que as palavras se autodesejem, não deve prostituí-las. 

Pensei que havia flores nessa coisa de escrita e que o autor poderia pintá-las no branco com essas pinças que Deus lhe deu. Porque se Ele deu pinças aos escritores, hão de ser para selecionar palavras e depois gravá-las numa sintaxe plausível. Mas, qual!? Tantos usam suas pinças para escrever ofensas... para esbravejar seu mau-humor, suas intolerâncias, suas intransigências... “Ins” em caixa-alta. Sim, porque dessa maneira se pode falar sem jamais ser interrompido. Oh, céus, que coisa feia!

Sinto dó daqueles que usam a pena para atravancar a mente dos outros e não para libertar a própria. Quando penso que estou, todos os instantes, num contexto assim – arrepio-me. Para que serve essa voz escrita senão para falar sozinho e ao mesmo tempo falar com multidões? Sinto dó dos que escrevem o que pensam porque o pensamento voa alto e longe, mas a escrita caminha a passos lentos - lennnntos. Melhor, então, seria se o autor  escrevesse só aquilo  que pensam que ele pensa.  Porque, na verdade, o que ele pensa é que pode, com a escrita, transformar os seus sentimentos em pensamentos universais. Ledo engano? Talvez.

A pena sozinha não faz a escrita, é preciso existir um humano por detrás dela. Um humano que, acima de tudo e de todas as perspectivas, tenha medo da própria escrita. Porque o escrito feito sem humanidade e sem sacrifício geralmente é lido sem prazer. Assim – depois de passar a semana inteira folheando a biblioteca – é que o autor se sente pronto para escrever cinquenta linhas. Linhas essas em que ele pensará que escreveu as suas mentiras, mas o que realmente escreveu foi a mais pura verdade. A verdade do seu ócio trabalhoso. Que a verdade então seja dita: uma semana inteira folheando a biblioteca para escrever cinquenta linhas e terminar um texto, enfim, é como acabar de dar à luz em parto normal, ter o filho nas mãos e depois enforcá-lo.

Lamento ter chegado à conclusão de que há tantos textos que não me ostentam como quero: demasiadamente. E se quer saber a minha verdade, prefiro a automorte a ter que encarar certas concordâncias. Porque posso até arredar as dificuldades de um punho compulsório, mas esta sina é uma alavanca muito pesada, pois o escritor é como um vulcão em constante erupção, e por causa disso perturba a ordem das coisas e não se importa com a minha reputação de virgem sacrificada para apaziguar deuses de leitura aguçada.  

Sei, um dia serei lixo cibernético, comida de traças e blá, blá, blá... mas,  com um pouco de sorte, serei eu a página em branco, um prostíbulo de palavras ostracistas cuja cafetina morreu grafofóbica.

(Publicado no jornal Diário da Manhã - Caderno 2 - Goiânia - Goiás em 23 de maio de 2013).
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