segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Pensamento engarrafado

Quando a minha voz se faz ouvir além das minhas próprias divagações... é pensamento desengarrafado feito Prosecco em festa de formatura. Mas o que eu tenho aqui comigo é um pensamento engarrafado do tipo vinho caro, daqueles que a gente só divide com pessoa muito agradável.


Vou desengarrafar o meu pensamento sobre aquele telhado de amianto que não estava lá essas coisas: muitas goteiras e dois parafusos soltos. Eu pedira ao meu pai para consertar, mas a labirintite não o permitiu. Quando ventava forte, era possível ver o telhado se separar da vigota. Mas as crianças não se importavam com isso – corriam pra lá e pra cá numa perseguição infinda. Infinda, mas só até o bolo de cenoura com calda de chocolate quente ser posto sobre a mesa.


Sempre que chovia, era preciso espalhar panelas sob as goteiras. Havia mais goteiras do que panelas naquela casa. Mas o cenário não incomodava nem um pouco as crianças. Quantos barquinhos de papel cabiam no copo do liquidificador? Agora me lembro: apenas um: o Titanic.

O quintal ficava alagado todas as vezes... e todas as vezes a água, por baixo das portas, invadia a sala e a cozinha. Por causa disso, o meu avô fez uma pinguela de tábua e a colocou em cima de meia dúzia de tijolos – da porta da sala até o portão – ‘uma beleza de pinguela’. Quem dizia isso eram as crianças indo-e-vindo-sem-parar – sem parar até os tijolos se transformarem em cacos.

Quando a chuva cessava, a lida na casa era farta. Aguaceiro para enxugar e o piso para desencardir. Coisa difícil era remover da cerâmica o aro enferrujado de um desenho caprichoso do botijão de gás. Difícil mesmo era ter que explicar para a Pequena como aquela mancha apareceu ali se o botijão não é de tinta.

Mas a chuva não durava para sempre e em tardes de primavera o jardim ficava repleto de flores-de-cardeal. Minha avó plantara só para eles, mas os cardeais jamais pousaram ali. Não importava, havia tantos beija-flores e tantas borboletas que os cardeais não faziam falta alguma. Não importava, pois a coisa mais bonita do mundo – a pipa – pairava sobre as flores, os pássaros, as borboletas e ainda tinha um menino segurando-a por uma linha.

O menino e a menina adoravam as pipas mais do que adoravam o jardim, os pássaros e as borboletas. E quem não gostava nada disso era a minha avó – que precisava reanimar as plantinhas a cada tombo de menino sobre o jardim.  O que a avó gostava era de reunir a molecada na varanda para comer pipoca temperada com “Sazón”. Depois, enquanto o dia se demorava mais um pouco, jogávamos peteca: as crianças, as mães, os amigos e os avós também... Eram risos de todas as idades e cumprimentos.
À noite, deitados no chão da sala, quase sempre nós fazíamos uma coisa ou outra: assistir filmes, ler histórias, ouvir músicas, contar piadas... e o mais divertido: brincávamos de “Vítima, Detetive e Assassino” com os avós. Quando o vovô tirava o papel de assassino, ele se esquecia de que devia ser discreto e matava todos de uma vez só com uma espingarda-braço...

Assim, eu desengarrafo o pensamento de um tempo em que nos faltavam o conforto de tantas coisas. Faltava-nos quase tudo; e, nesse quase, jamais faltou a alegria de viver.

(Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 08 de agosto de 2013).
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