Tem até uma cozinha – ele afirmou e eu retruquei – e uma sacada. Mario debruçou no parapeito da janela para vislumbrar, até onde seus olhos alcançavam, o Centro Histórico de Porto Alegre. Depois fixou o olhar em uma diminuta mancha escura na ponta dos dedos que tesouravam um cigarro, deu um generoso trago aspirando a fumaça para os pulmões e lentamente a expirou, ainda olhando para os dedos: – Se vai continuar fotografando a minha vida, é preciso saber que eu não estava infeliz naquele quartinho. Porque, na verdade, eu moro em mim mesmo. Não faz mal que o quarto seja pequeno. É bom, assim tenho menos lugares para perder as minhas coisas.
– Mario, se você mora dentro de si mesmo, onde vai
receber as visitas? –, perguntei sorrindo e lhe mostrando a cadeira thonet. –
Visitas? –, indagou, fatigado, enquanto caminhava com o apoio de uma bengala. –
Rubem Braga, Augusto Meyer, Manuel Bandeira... - Para que tudo isso? Um velho
não pode só ficar em paz? –, falou, a grosso modo, acendendo outro cigarro. –
Ora, Mario, onde já se viu uma estrela
não querer brilhar, se a existência de uma estrela é brilhar?... Fitei-o
por alguns segundos esperando uma reação, uma resposta ou até mesmo uma bronca,
mas ele parecia não querer outra coisa a não ser divagar com os olhos e jamais
com a boca... Esperei, esperei... e ele apenas divagava com a sutileza de
alguém que sabe existir, mas não sabe que sabe.
Depois
perturbei a sua plenitude existencial como se fosse uma mosca que acabara de
pousar em seu nariz no momento em que lia “À la recherche du temps perdu" – O que acha de contar-me um pouco mais de
sua vida? Se quiser falar em francês, vou gostar muito de ouvi-lo. Por que
mesmo que você não aceitou se candidatar à Academia Brasileira de Letras,
sabendo de antemão que seria eleito? Ah, meu velho, fale! Temos muito tempo até
o lançamento de 80 Anos de Poesia e
acho que já fotografei tudo que tinha para fotografar...
Tudo, até olhar para ele e me deparar com um quadro
pitoresco! Mario, ali, sentado naquela thonet com seu corpo ereto, apoiando as
mãos na bengala, vestido de um paletó cinza de linho, calça preta, camisa azul,
um lenço branco na lapela e a expressão facial mais gentil e pura que eu já
fotografara desde sempre. Atrás dele, uma estante rústica feita de peroba rosa.
A estante estava vazia e... oh, céus, por que? Porque Quintana morava dentro de
si. E foi dentro de si que passou toda a sua vida. Dividindo-a apenas com os
seus sonhos. Não teve esposa e nenhum filho para herdar-lhe o nome.
Toda a sua existência dita, naquele instante, nas
divagações de seu olhar. E aquela foi a fotografia mais linda que eu fiz em
toda a minha vida!
(PS: Segundo Mario, em entrevista dada a Edla Van Steen em 1979, seu nome foi
registrado sem acento. Assim ele o usou por toda a vida).
Publicada no jornal Diário da Manhã - DM Revista - Goiânia - Goiás em 03 de fevereiro de 2014.
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