Naquele dia, eu percebi que ela não estava
muito bem. Titubeava uma certa gagueira no olhar todas as vezes que alguém lhe
perguntava sobre quando sairia a publicação do Livro de Sóror Saudade. – Logo!
–, ela dizia, dando a entender que não queria falar sobre o assunto naquele
instante.
Ora, éramos amigas desde a infância e eu só
estava ali porque a sua última carta realmente me preocupou. Contou-me que o
casamento com Antônio Guimarães não estava nada bem e ela pensava em pedir a
carta de desquite. Ela havia escrito o poema "Prince charmant", e o
dedicara ao jornalista Raul Proença. O marido não havia gostado disso. Além
disso, estava mais enciumado ainda por ela ter que dar aulas particulares de
português e assim sair de casa sozinha.
Ali do seu lado, tentei conduzi-la à razão e,
honestamente, pensei que conseguira. Pois logo que Fernando Pessoa chegou e
segurou suas frágeis mãos dizendo: “alma sonhadora/ Irmã gêmea da minha!”, ela
esboçou um riso quase infante e passou andar pelo salão como se seus pés não alcançassem
o chão. E eu, que estava distraída e encantada com o seu flutuar, esbarrei em
Manuel da Fonseca, que também parecia imerso na existência da poetisa. Ele se
mirou a minha pessoa, mas só para dizer: “e lá se vai Florbela, de negro,
esguia, seus longos braços se abrem esbanjando braçadas, cheios da grande vida
que ela tem”...
Logo pensei que as preocupações de Flor eram
irrelevantes, pois como pode ser tão amada e infeliz? Depois daquele dia, tive
que deixá-la por um longo período. Meu pai estava muito enfermo e por isso tive
que ir para Lisboa, deixando Florbela aos cuidados de seus próprios
pensamentos. Continuamos nos correspondendo por cartas e nelas contou-me que se
separou de Antônio e já estava enamorada pelo médico Mário Pereira e que fora
com ele viver. Ele era um bom homem e permitia que ela escrevesse para o jornal
- D. Nuno de Vila Viçosa. Pouco tempo
depois, recebi uma carta do próprio Mário, dizendo que Flor havia tentado o
suicídio. Que ela não estava bem. Suas antigas neuroses por causa de um aborto
involuntário se instalaram com grande força. Como se isso não bastasse, Apeles
Espanca, seu irmão, morrera em um acidente aéreo.
Não tive escolha, voltei para Vila Viçosa, no
Alentejo, para cuidar de minha amiga e nos últimos três anos fiquei por perto.
Mas ela jamais se recuperou. Sua vida pairava num limbo de tristezas, das
neuroses afetivas, das dores físicas e emocionais. Assim, ela se decidiu: na
véspera da publicação de Charneca em Flor, Flor se despetalou. E pétalas tantas
espalhou mundo adentro: “O meu mundo não é como o dos outros, quero demais,
exijo demais; há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que eu nem
mesma compreendo, pois estou longe de ser uma pessoa; sou antes uma exaltada,
com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que não se sente bem onde
está, que tem saudade… sei lá de quê!”
(Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 27 de janeiro de 2014).
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