Não poderia precisar, mas desconfiara que a aurora estava quase surgindo. Hans Krása está cantando baixinho uma de suas óperas enquanto a noite se veste da única paz possível em Auschwitz. Ontem ou amanhã, não importa, o jovem Elie declamara uma de suas poesias:
“Nunca me esquecerei daquela noite, a primeira noite de campo, que fez minha vida uma noite longa e sete vezes aferrolhada. Nunca me esquecerei daquela fumaça.”
Por um instante, tentando conduzir minha mente à recordação desses versos, olhei para o menino Elie, que aqui não é Eliezer Wiesel, e sim, um número e nem sei que número é, pois há tantos números em Auschwitz... mas ao olhar para ele, enfim, adormecido, imaginei o que ele estaria sonhando.
“Nunca me esquecerei dos rostos das crianças cujos corpos eu vi se transformarem em volutas sob um céu azul e mudo.”
Talvez, Elie, sustenido pela generosa voz de Hans, estivesse, nesse instante, sonhando com sua própria história: um herói em Auschwitz. Pobre Elie. E é só um menino de quatorze anos. Como direi a ele que a sua história não será uma história de sobrevivência, e sim apenas versos sofridos sobre as muitas mortes que ele viverá nos campos?
“Nunca me esquecerei daquelas chamas que consumiram a minha fé para sempre. Nunca me esquecerei daquele silêncio noturno que me privou por toda eternidade do desejo de viver.”
Elie escreve versos enquanto cava a própria cova e Hans Krása encontrou aqui a ópera perfeita... Tenho a impressão de que tanto o menino Eliezer quanto Hans e os seus instrumentistas não estão no holocausto, mas vislumbram-no do alto de suas auras apaixonadas pela existência. Para eles, penso que o cenário pouco importa, importa-lhes cumprir com a obrigação de embelezá-lo com música e versos.
É que na verdade, depois de um tempo em Auschwitz, coisa alguma importa: de quem é culpa, não importa; se é dia ou noite, não importa; se está vivo ou morto, não importa...
Ouço Hans e Elie... Não me canso nunca, pois temo que, um dia, ouvi-los seja apenas a fabulosa lembrança do Holocausto. Se os racistas pretendem diminuir a dignidade humana de uma criatura/irmã, os nazistas, por sua vez, pretendem extirpá-la completamente. Mas eis que Hans e Elie, com suas artes, reafirmam a dignidade de sobreviver, ainda que morto, e essa dignidade é construída sobre a magnífica ironia de uma flor que ressurge de fezes.
“Nunca me esquecerei daqueles momentos que assassinaram meu Deus, minha alma e meus sonhos, que se tornaram desertos.”
Os cadeados se abrem e ainda não há a luz de um dia: Hans e seus instrumentistas são levados por gigantes cruéis e eu imagino que é chegada a hora de Hans compor o final de sua ópera.
“Nunca me esquecerei daquilo, mesmo que eu seja condenado a viver tanto tempo quanto o próprio Deus. Nunca...”
... E eu, Primo Levi, num grito interior, pergunto: é isso um homem?
(Este texto é uma ficção baseada na obra, “É isso um homem?” – do escritor italiano Primo Levi)
Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 02/06/2012
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