segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Dor de amar a vida

No instante em que fora espancado, estava distraído. Tem essa mania de estar sempre pensando em outra coisa – “tudo” é sempre outra coisa –, segredo para não sentir dor-de-viver. Mas enquanto sua face girava de um lado para o outro – tal qual uma biruta no frenesi do vento –, ele pensava mesmo era no som das bofetadas...
Um som que o ensurdecia, deveras, devido ao toque violento próximo aos tímpanos. Um silvo longo e finíssimo zunia como uma cigarra em seus ouvidos, e ele pensava, reflexivo como um Buda – seria aquele o som triunfal da morte? Estaria agora mais perto, enfim, de um deus?
Deuses. Passou a vida sem acreditar neles e por que acreditaria encontrar-se com um, agora, ali? Talvez tenha sido por causa da sinfonia que laureou a sua cabeça num zunido quase insuportável.
Ah, aquele zunido! Aquele maldito zunido, era algo de que ele queria libertar-se com o único intuito de ouvir as batidas descompassadas do seu coração... Aquele, sim, era um som bonito de se ouvir – sorriu –, podia vislumbrar o modo como o seu coração se agitava dentro do peito. Maravilhoso: cada artéria, cada contração, cada pulso minuciosamente orquestrado de modo superlativo... Mas era cômico... Tão cômico, meu Deus.
Caído, sentia uma dor lancinante a lhe comprimir o peito e pôde ouvir o barulho do sangue na fronte, correndo com muita pressa para levar ao cérebro a informação de que a carne estava sendo subjugada. Pode-se ouvir – sim, nesse instante –, pode-se ouvir coisas: vá devagar, não suba as escadas correndo... degrau após degrau... não corra. Não corra.
Mas o que estava correndo ali era o sangue, e a passos largos, no afã de conter o medo.  Na verdade, ele não sentia medo, não sentia nem mesmo a dor... Sentia a vibração do som, a melodia do instante, o balanço trépido dos músculos, o sussurro das gentes, o choque hipovolêmico e, enfim, o silêncio absoluto. Uma paz, também, absoluta. Uma paz jamais sentida. Uma alegria d’alma capaz de fazê-lo flutuar sobre os demais, apesar do peso que lhe cobria os membros... O peso era cheiroso – lembrava as primeiras chuvas do ano, que somente chegam bem depois daquele cheiro – o cheiro de terra molhada.
Olhou para cima para contemplar de quem eram as lamentosas vozes que o aturdiam e até nesse momento se viu distraído: um pássaro diminuto daqueles chamados de “Fim-fim” – cor azul-petróleo e o peito amarelo-ouro e com aqueles seus tímidos pezinhos a ciscar a terra em busca de um suculento verme... encontrou muitos, e os devorou como num passe de mágica  – depois, voou lindamente.   
Magnífico! Sorriu, e no entorpecimento da fadiga, deixou-se levitar – estava cansado: cansado o corpo, cansado o coração, cansado o espírito – olhou para o céu – o céu estava tão longe. O céu é muito longe para se alcançar degrau-por-degrau... Longe demais... Cansado. Tão cansado que a ânsia pela morte lhe transbordou o pensamento em versos: quero, oh, Deus!, uma existência breve/ como a de um pássaro/ uma linda plumagem e um canto maravilhoso em louvor à vida/ vida-breve em voos perto do céu/ e, depois, Fim-Fim.


O poeta escreveu essas palavras na lápide da memória e adormeceu sem ao menos inculcar que estava enterrado. Dias depois o Fim-fim voltou para comer os vermes gordos que sobrepujavam a sepultura... Dias depois o poeta não sabendo que jazia morto - abolava na mente a ideia de que a vida-é-coisa-fabulosa.

Clara Dawn é escritora: romancista, contista, cronista do Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia  e Editora Cultural da União Brasileira de Escritores de Goiás. www.claradawn.com
(Publicada no jornal Diário da Manhã - DM Revista - Goiânia - Goiás - em 03/10/2014)
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