segunda-feira, 28 de maio de 2012

O estranho e o burro

Não aguento mais as cobranças de alguns de meus leitores sobre a ausência da Neura. Aquela criatura cuja vida contingente é fantástica aos olhos de tantos. Pensei então em descrever sua morte. Um suicídio seria digno de Neura, mas qual? Ela jamais seria capaz de tirar a vida de uma barata, ainda que a barata em si, fosse ela mesma. Oh, céus!
Quem sabe uma morte por atropelamento? Nada surpreendente para uma pessoa que vive abolhada num universo oblíquo, incapaz de se relevar na História da humanidade – como uma vaca não sabe que é uma vaca e menos ainda sabe por que a chamam de vaca. Apenas é. Mas uma vaca sabe se impor, ainda que aos berros... Ah, Neura, por que será que eu não acabo agora mesmo com você num simples “Delete”? Por Cristo, quando penso que eu poderia ser ela... Pobre Neura, pobre de mim.
Pois bem, enquanto eu arranho a minha reputação com a parca vida de Neura, ela, com sua voz maciiiiia e seu jeito cabisbundo, começa a surgir no parapeito da janela, como se um fantasma fosse. Parece mais magra. Sim, está caquética – mas não é à toa, diz ela. Depois olha para além da paisagem e se joga inteira dentro de um suspiro cantochão de causar inveja a gregorianos. É interessante ver Neura enxertada num suspiro. É como ter a chance única de assistir a uma apresentação sinfônica do Inverno de Vivaldi. Uma ópera, o suspiro de Neura é uma ópera realista fantástica.
Contou-me que esteve “óperando” sua vida em terras árabes. O homem por quem se apaixonara, o estranho, a levou para um passeio no deserto. Depois de três dias perdidos e semimortos, foram encontrados por um Sultão e seus servos. O estranho pediu água. Beberam água. O estranho ofereceu dinheiro por um dos camelos. O Sultão não precisava de dinheiro, pediu para que o homem lhe desse a mulher. “O estranho seria um crápula, um covarde, um desumano, um ser imundo e desprezível se aceitasse a barganha” do Sultão. Quatro horas depois o estranho, do lombo do camelo, enxergou a cidade.
Em Rabat, o estranho se fartou. Tinha dinheiro para gastar ali. E gastou tanto quanto pôde. Nas ruas, foi perseguido por um burro. O animal estava desnutrido e machucado por açoites. O estranho se afeiçoou ao burro. O burro se afeiçoou ao estranho... Era uma coisa linda de se ver, não o estranho, mas o fascínio do burro pelo homem... Se burro não fosse, seria Homem, aposto.
O burro não poderia, jamais, ser Homem. Porque “ser Homem é o máximo que se pode ser” e o burro, assim como a vaca, apenas é – criatura desumana. Será? Ora, o estranho tinha que voltar para sua terra e sabia que cedo haveria de deixar o burro. Assim, ambos seguiram sem vontade pela medina de Rabat. Era triste de ser ver, não o burro, mas a aflição medonha do Homem em livrar-se do animal que levava consigo. Se pudesse, se constrangedor não fosse, o Homem jamais deixaria o burro.
Foi então que um charreteiro apareceu, dizendo que o burro era o condutor de seu móvel. O charreteiro exigiu que o estranho lhe devolvesse o animal. Exigiu aos gritos, chicoteando o burro. O estranho seria o pior dos seres da terra, seria um crápula, um covarde, um desumano, um ser imundo e desprezível se abaixasse a cabeça diante do subjugo do charreteiro e... desta vez, o estranho não cedeu. Retirou da sacola um saco de moedas e pagou o preço necessário para levar consigo, para sempre, o animal.
... Neura, ali no parapeito da janela, ainda mergulhada e presa na asfixia de seus pensamentos. Perguntei a ela se o a dor que vinha de suas entranhas era pelo fato de o estranho ter amado mais o burro do que a ela. Ela “óperou” mais um longo suspiro e disse-me que a dor de suas entranhas era mesmo saudades do Sultão.

Imagem do google:João L. Costa, O velho, o rapaz e o burro
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