O vento se foi e levou com ele a chuva. Nas folhas secas espalhadas pelo chão, deixou uma cortina de névoa que transforma os faróis dos carros em fogueiras de outono... Rabisco essa imagem no bloco de notas e o sustento com a mão direita na altura do meu nariz para sentir o cheiro da terra molhada. Para respirar o ar lavado. Para queimar meus olhos em chamas retilíneas e lançar-me – e daí? – num rio de um outono amarelo... Amarelo encardido e pesado – corre o rio debaixo da ponte – consequência das águas que lavaram o ar.
No meu bloco de notas, ainda de frente ao meu nariz, flerto com pedras para construir metáforas que sustentam em mim o inarrável desejo de pertencer às histórias que meus dedos contam. De ser parte-inteira do afã dos meus rabiscos. De capacitar-me a desenhar caminhos, sabendo de antemão onde e quando esse rio amarelo vai virar um mar... Um mar, assim, azulinho... Mas, por Cristo, não há nada que eu tema mais do que o mar.
Molho a ponta do dedo médio na língua e dou um piparote insatisfeito na página do bloco de notas. Depois acho graça e começo a rir da brancura que surgiu do outro lado. E se eu não estivesse fazendo minha semanal caminhada rumo ao patíbulo, meu riso não teria me afetado. Com o riso afetado e com medo do mar, arranco a página em branco e construo um barco. Um barco branco. Um barco vazio... Um calado tosco de expressão ancorada. Um barco diminuto para velejar tranquila no rio amarelo. Porque serpentear num rio por entre paredes citadinas é mais fácil do que surfar mar adentro.
Olho para o bloco de notas, agora estacionado na mesa, e para o barco feito de madeira-papel para entender o que eu acabei de construir: projeto e ação... Sinto vontade de achatar o barquinho num tapa e atirar o bloco de notas pela janela.Penso. Penso nisso por alguns instantes e plaft! – barco pastelado na palma da minha mão. Depois, miro o alvo – janela aberta – e lá se vai o bloco de notas. Voa por andares acima e depois se despetala andares abaixo.
Li em algum lugar que nos momentos de desespero as pessoas vão para cima e nunca para baixo. Um elevador, uma escada, uma árvore – sempre para cima. Buscando, não sei o porquê, socorro do “alto”. Insustentável – pessoas não possuem asas. Do alto de minha torre, vou vislumbrar as folhas de papel que dançam desordenadas pelo ar da hora doze. Enquanto isso, faço do barco achatado uma bola tenaz e, mantendo-a cativa na mórbida circunferência que alivia medos, seguro-a com força.
Não saberia dizer se eu desejo atirar, também, o barco embolado pela janela, pois me encanto com o que acontece lá embaixo... Na sarjeta, descem amiúde restos de chuva e páginas em branco.
("A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote e adeus." Machado de Assis).
Imagem: Fernando Ekman - Enxurrada, Acrilica sobre tela
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