A televisão estava ligada. Na tela, movimentavam-se,
silenciosamente, imagens em preto e branco. Leonora estava ali, sentada em seu
estofado marrom, e lia, por cima dos óculos e pela quinta vez, O amor
nos tempos do cólera. O melhor livro que já lera desde Orgulho e
Preconceito. Tinha acabado de lavar as louças do jantar e o seus dedos
estavam frios e enrugados.
Augusto, o companheiro de longa data, estava debruçado no
parapeito da janela e olhava para o movimento nas ruas e vez ou outra suspirava
com a lentidão de uma saudade remota – tempo que “já era”. Acabara
de jantar e os dedos ainda cheiravam a frango frito. Os mesmos dedos que tinham
esfregado o nariz – o nariz também ficou cheirando a frango frito.
Ela molhou a ponta do dedo médio na língua e tentou mudar a
página do livro – não conseguiu – os dedos estavam congelados. Pressionou e
fazendo um movimento de vaivém, agrediu a folha de papel em vão. Não fazia mal.
Fechou o livro e depois o abriu numa página qualquer... Ora, estava lendo O
amor nos tempos do cólera, qualquer página, capitulo, parágrafo ou frase,
valiam momentos de indizíveis prazeres... Ah, Florentino Ariza! Ah, Florentino!
E um suspiro profundo e sibilante serpenteou pela sala.
Augusto olhou para a mulher mergulhada em devaneios. Não se
importou. Ela não compreenderia, jamais, que Florentinos não existem. Passou os
dedos na fronte levando-os ao alto da cabeça como se desejasse pentear os
cabelos e assim chamar a atenção de sua dona. Sem chance. A mulher não estava
ali – embarcara com Florentino num trem qualquer, e o desditoso senhor voltou a
sua poltrona para assistir, pela vigésima vez, Crepúsculo dos deuses – aumentou
o volume de modo a perturbar a leitura da mulher. De modo a incomodar os
vizinhos que podiam ouvir o desenrolar da trama:
“Calem-se: luzes, câmera... está pronta, Norma? – Que cena é
esta, onde eu estou? – Na escadaria do palácio. – Oh, sim, lá em baixo esperam
pela princesa. Estou pronta. – As câmeras se viram para ela, enfim.
A vida se mostrou estranhamente piedosa com Norma Desmond. O sonho no qual ela
se agarrara a vida toda, acabou de lhe envolver e ela desceu as escadas de modo
teatral... – Não posso continuar a cena, estou feliz demais. Senhor Demille,
posso dizer uma coisa? Obrigada. Senti tanta falta de tudo isso. Jamais os
deixarei outra vez. Esta é a minha vida... para sempre”.
Vidrado na tela da Televisnao, Augusto divaga: Glória Swanson!
Oh, Glória! Com sua boca pequenina e seu olhar voluptuoso a encenar Norma
Desmond. Com sua suave selvageria a enlouquecer dissolutos rapazes. – A vida
segue, e por Cristo, por quê?
Leonora fechou o livro num repente. Inclinou a cabeça para trás
até alcançar o colo do amado que jazia em sua poltrona, magnetizado pelas
vestes de seda de Glória Swanson. Ele, enfim, olhou para a amada e com sua mão
gordurosa tocou os seus cabelos, depois trouxe para perto de si aquele pescoço
ossudo e dobrou a espinha caquética até que sua boca pousou de leve nos lábios
murchos da mulher e beijou-os suavemente... Tão suaves e gentis eram aqueles
beijos, desde que a mulher se lembre. E ali, ela, tal qual um veleiro que
perdeu a força do vento, desfalece sob os comandos de seu homem e naquele
instante todos os sentidos são sentidos: a cortina desce e o espetáculo
incendeia o palco.
(Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia -
Goiás em 20 de agosto de 2012).
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