segunda-feira, 20 de agosto de 2012

“Não posso continuar a cena, estou feliz demais”



A televisão estava ligada. Na tela, movimentavam-se, silenciosamente, imagens em preto e branco. Leonora estava ali, sentada em seu estofado marrom, e lia, por cima dos óculos e pela quinta vez, O amor nos tempos do cólera. O melhor livro que já lera desde Orgulho e Preconceito. Tinha acabado de lavar as louças do jantar e o seus dedos estavam frios e enrugados.

Augusto, o companheiro de longa data, estava debruçado no parapeito da janela e olhava para o movimento nas ruas e vez ou outra suspirava com a lentidão de uma saudade remota –  tempo que “já era”. Acabara de jantar e os dedos ainda cheiravam a frango frito. Os mesmos dedos que tinham esfregado o nariz – o nariz também ficou cheirando a frango frito.  

Ela molhou a ponta do dedo médio na língua e tentou mudar a página do livro – não conseguiu – os dedos estavam congelados. Pressionou e fazendo um movimento de vaivém, agrediu a folha de papel em vão. Não fazia mal. Fechou o livro e depois o abriu numa página qualquer... Ora, estava lendo O amor nos tempos do cólera, qualquer página, capitulo, parágrafo ou frase, valiam momentos de indizíveis prazeres... Ah, Florentino Ariza! Ah, Florentino! E um suspiro profundo e sibilante serpenteou pela sala.

Augusto olhou para a mulher mergulhada em devaneios. Não se importou. Ela não compreenderia, jamais, que Florentinos não existem. Passou os dedos na fronte levando-os ao alto da cabeça como se desejasse pentear os cabelos e assim chamar a atenção de sua dona. Sem chance. A mulher não estava ali – embarcara com Florentino num trem qualquer, e o desditoso senhor voltou a sua poltrona para assistir, pela vigésima vez, Crepúsculo dos deuses – aumentou o volume de modo a perturbar a leitura da mulher. De modo a incomodar os vizinhos que podiam ouvir o desenrolar da trama:

“Calem-se: luzes, câmera... está pronta, Norma? – Que cena é esta, onde eu estou? – Na escadaria do palácio. – Oh, sim, lá em baixo esperam pela princesa. Estou pronta. –  As câmeras se viram para ela, enfim. A vida se mostrou estranhamente piedosa com Norma Desmond. O sonho no qual ela se agarrara a vida toda, acabou de lhe envolver e ela desceu as escadas de modo teatral... – Não posso continuar a cena, estou feliz demais. Senhor Demille, posso dizer uma coisa? Obrigada. Senti tanta falta de tudo isso. Jamais os deixarei outra vez. Esta é a minha vida... para sempre”.
Vidrado na tela da Televisnao, Augusto divaga: Glória Swanson! Oh, Glória! Com sua boca pequenina e seu olhar voluptuoso a encenar Norma Desmond. Com sua suave selvageria a enlouquecer dissolutos rapazes. – A vida segue, e por Cristo, por quê?

Leonora fechou o livro num repente. Inclinou a cabeça para trás até alcançar o colo do amado que jazia em sua poltrona, magnetizado pelas vestes de seda de Glória Swanson. Ele, enfim, olhou para a amada e com sua mão gordurosa tocou os seus cabelos, depois trouxe para perto de si aquele pescoço ossudo e dobrou a espinha caquética até que sua boca pousou de leve nos lábios murchos da mulher e beijou-os suavemente... Tão suaves e gentis eram aqueles beijos, desde que a mulher se lembre. E ali, ela, tal qual um veleiro que perdeu a força do vento, desfalece sob os comandos de seu homem e naquele instante todos os sentidos são sentidos: a cortina desce e o espetáculo incendeia o palco.

(Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 20 de agosto de 2012).


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