Por minha causa, deu um riso muito maior do que a boca poderia dar. Por minha causa, deu passadas maiores do que as pernas seriam capazes, e foi por minha causa que abriu os braços numa extensão além dos limites humanos.
As flores chegaram numa cesta emoldurada por um laço de fita de cetim azul. Na fita, o meu nome bordado com letrinhas douradas. Não havia bilhete – guardei a cesta – as flores feneceram – porque mortas estavam – o laço de fita perdeu, ora, a beleza, debruçado sobre flores cadavéricas – visão horrenda! - o lixo, então, fartou-se.
Dias depois, mais flores numa cesta com frutas exóticas, outro laço de fita, desta vez branco com o bordado amarelo... sem remetente. Não comi as frutas, não quis ofertá-las a outrem – apodreceram no fundo de uma gaveta – agora poderiam servir para alguma coisa – adubo – as flores também.
Duas cestas bonitas de um não sei quem... Os laços de fita? Servirão para alguma coisa... aposto que sim. Guardei-os em um canto qualquer. Afinal, tudo aquilo poderia ser coisa do amado – dizia que não –deixa pra lá.
Tempos depois, trazida por um motoboy, recebo uma pasta com dezenas de recortes de jornais. Dentro dela, textos meus, um laço de fita vermelho com um bordado azul e um pedido para autografar os recortes. Perguntei ao moço quem enviara a pasta, ele não disse. Tudo bem, não era a primeira pessoa a me mandar recortes de jornais para eu autografar – autografei – todos eles – dezenas, sim, autografei.
Enfim, um e-mail, alguém chamado GG, disse-me que encontrou Alétheia num banco de praça... dessa mania que eu tenho de crossbook – espalhei uma centena de livros por aí. GG confirmou ser aquele quem enviara as cestas e a pasta. Disse que se identificava muito com um de meus personagens, aliás, GG obsedou a ideia de que era um de meus personagens – mas não disse qual. Ora, pensei logo, ‘maluco assim, só pode ser o assassino’.
Temi-o e passei a ignorar seus contatos e a recusar seus presentes. Desapareceu. Eu guardei o episódio na lembrança e por causa dele parei com o crossbook. Mas num certo dia recebo a ligação de uma pessoa dizendo ser jornalista e que queria me entrevistar devido à homenagem que o Goiânia Ouro estava me fazendo em decorrência da edição esgotada de Alétheia. Marcamos para o outro dia, no meu trabalho.
A pessoa chegou na hora marcada... Marcada, também, ficou a sua aparência em minhas lembranças para sempre: horrível e repulsiva... tentei não demonstrar espanto, embora fosse humanamente impossível. Ele carregava uma maleta daquelas que se usa para guardar instrumentos. Ele me fez perguntas sobre Alétheia. Perguntas que eu não conseguia responder, pois não me livrara da curiosidade do que lhe havia acontecido para deformar seu crânio. Ele tinha a cabeça e os membros enormes. – Hiperparatiroidismo – disse-me ele, sem que eu perguntasse, e continuou – estou assim desde os trinta anos. Depois, pegou sua maleta e a colocou sobre a mesa, retirando dela uma gaita. Eu ri - uma gaita num porta-clarineta. Ele ignorou o meu riso e começou a tocar Asa Branca em sua gaita e o meu riso emudeceu – então todos os pelos do meu corpo ouriçaram – sem dúvida alguma, ele é um artista. Pensei.
Terminou de tocar, guardou a gaita, agradeceu-me a entrevista e ao se despedir disse-me: “O casebre de Sebastiano Vicenzo tornou-se o meu refúgio secreto” e partiu, deixando-me vazia de sentimentos e oca de palavras... Levei um tempo para entender que o falso jornalista era o GG e ao mencionar Sebastiano Vicenzo, personagem de Alétheia, violinista que teve 80% do corpo queimado, mas voltou a tocar depois de encontrar um amigo, também ele, GG, estava voltando a tocar. Encontrara em mim a força necessária para isso.
Nesse dia compreendi o real valor da literatura e todo o“por que eu faço isso?” finalmente teve resposta e, embora o tema principal do livro seja o preconceito e a discriminação, ao parar com o crossbook, eu me tornara vítima do meu tão bem defendido “despreconceito”: casa de ferreiro, espeto de pau.
(Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 23 de setembro de 2012).
Não direi tratar-se de um texto “surpreendente”, pois que conheço a capacidade de minha amiga escritora. Mas confesso que me encantaram as novidades contidas nesta crônica. Para começar, a autora imprime um ritmo verdadeiramente cinematográfico ao texto, com o uso de travessões sinalizando cortes abruptos, cenas sobrepostas ganhando tempo na narrativa.
ResponderExcluirMisturando realidade e ficção e fazendo de si mesma personagem-narradora, Clara nos brinda com um escrito em que, no final das contas nos faz pensar, duplamente: primeiro, quanto ao(s) motivo(s) de se escrever. Para que escrevemos? Recentemente, uma amiga me perguntou “que raio de vício é esse meu de escrever num blog que ninguém lê”? Mas havia comentários lá, sinal de que ela se enganava em sua avaliação. O problema é que nossos leitores, no mundo virtual e mesmo na escrita impressa, não comentam, não dão o necessário feedback para que possamos saber se somos lidos. E o escritor só sobrevive se há leitores atuantes, ativos, que divulgam e compartilham nossa obra.
A segunda reflexão é sobre a nossa atitude diante das coisas, da vida e das pessoas. Falamos A e vivemos B, nossas ações não condizem com nossas palavras. Clara faz mea culpa e se declara parte dessa massa paradoxal, ao usar o dito popular “casa de ferreiro, espeto de pau”. Eu acrescentaria outro, “faz o que eu digo, não faz o que eu faço”. E segue a vida. O texto claradawniano pode nos ajudar a mudar. Essa é uma das tarefas do autor. Não se trata de mudar o mundo, mas, sim, de mudar as pessoas. Aí, as pessoas mudam o mundo.
Parabéns, Clara, mais uma vez. Amo sua existência.