A vida é como aquele fio condutor de eletricidade que atravessa o Lago dos Pintados no Vale das Quimeras. De vez em sempre, vem um martin-pescador e pousa no fio e ali permanece: de cauda em riste e a cabeça baixa a vislumbrar diminutos peixes. E espera e mergulha e volta ao fio sem coisa alguma no bico... e depois alça um voo cantante...
Não sei se aquilo é um canto, parece mais o rumor de um vinil que teve a desfaçatez de emperrar enquanto a agulha da vitrola acariciava a voz “óperante” de Rossini.
Um silvo longo e pressagioso; uma tentativa frustrada de tocar notas perfeitas no arranjo infeliz de sua desafortunada pescaria - infortúnio que faz o fio titubear - o fio sempre balança. Balança, mas a vida continua mesmo assim, atraindo e repelindo partículas de energia – positivas e negativas.
Ocorre- e com certa frequência - ao fio que alguns pássaros pousam e cantam ali todos os dias; outros apenas pousam e seguidamente partem para sempre; outros fazem seu espetáculo muito acima do alcance do fio, numa longitude tamanha que é possível a ilusão de os estar enxergando enquanto se queima a vista no sol da hora doze.
Na hora doze, depois de uma esplêndida manhã outonal, um pássaro dissoluto pousou no fio e fez um estrago danado – depositou seus dejetos intestinais, empesteando o condutor de maneira enervada. Coisa horrível de se ver. Cenário que cobriu o fio com um aspecto asqueroso – nada tateante – repulsivo... E pensar que àquela hora ainda era a hora doze, arrepia-me. A hora doze: tarde demais para a chegada, cedo demais para a partida. Oh, céus! Oh, fio! Oh, hora! Oh, azar!
Mas o fio não deixou de ser fio, por isso. É o mesmo salutante fio de energia. Às aves é que são volúveis - vezes vêm, vezes vão, vezes cantam, vezes embelezam e por mais belas e encantadoras que sejam, sempre e sempre, deixam os resíduos de seus peculiares prazeres sobre o invólucro de plástico que veste a eletricidade – que veste a vida.
Há uma característica especial naquele fio que atravessa o Lago dos Pintados. Ele possui três luminárias que em noites-pós-chuva ficam acesas para atrair mariposas, e estas servem de deliciosos petiscos que os pintados adoram comer – depois que elas já estão nas barriguinhas dos lambaris. Contudo, o fato é o fio. O fio condutor de eletricidade: que acende as luminárias... luminárias que atraem mariposas... mariposas que atraem lambaris... lambaris que atraem pintados...É a vida seguindo, semeando. Ora atraída, ora atraindo: receptáculo transbordante de energias.
Há pequeninas luminárias despencando do fio nesse instante. Pendem como cachos de uvas e soberbas dão risos dourados a expor uma luz que a mente humana não sabe precisar. Faz-se necessário que o fio esteja conectado a uma força maior para, enfim, irradiar energia e acender lâmpadas. Lâmpadas que não impedirão, jamais, que pássaros dissolutos pousem no fio, mas a claridade e o calor serão suficientes para impedi-los de construir ninhos.
(Publicada no jornal Diário da Manhã - DMRevista - Goiânia - Goiás em 03 de dezembro de 2012).
Fonte da imagem: Impressões
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